Foto de: reprodução
Adoração dos pastores, Agnolo Bronzino, 1539-40
(Szépmûvészeti Múzeum, Budapeste, Hungria)
Comecemos desde logo por lembrar que há duas genealogias de Jesus nos Evangelhos, e muito diferentes. Antes de tudo, Mateus, na abertura do seu escrito (1, 1-17), propõe-nos uma genealogia "descendente" que parte de Abraão e chega a «Jesus, que se chama Cristo» através de 41 nomes. Ele apresenta a sua genealogia mediante uma sequência de «A gera B» e ordena simbolicamente a série em um tríptico histórico (de Abraão a David, de David ao exílio na Babilônia, da Babilônia a José, «esposo de Maria»), com 14 gerações de cada vez.
Estamos claramente na presença de um gênero de interpretação que procura descobrir mais um sentido profundo na história que diz respeito a Israel e a Cristo do que reconstruir uma trama documentada. Catorze é com certeza um número simbólico (7 vezes 2, e 7 é um algarismo perfeito); mas alguns imaginaram uma espécie de criptograma do nome «David»: as consoantes hebraicas, consideradas segundo o seu valor numérico, dariam precisamente o número 14, DWD = 4 + 6 + 4 = 14. Numerosas culturas veem nos números harmonias e proposições inscritas na natureza e na realidade humana.
Detalhe significativo: Mateus intitula a sua genealogia: «Genealogia de Jesus Cristo, filho de David, filho de Abraão». A sua intenção é, neste sentido, a de iluminar não só a origem hebraica de Jesus («filho de Abraão»), mas também o seu caráter "davídico", e portanto o seu caráter messiânico.
Entende-se então porquê esta página, aparentemente árida e semelhante a um catálogo monótono, talvez estimada e transparente para o leitor judeo-cristão. Não é difícil de compreender que a intenção do evangelista não era a de fazer uma pesquisa de arquivo sobre os antepassados de Jesus, mas - recorrendo à história de Israel e às suas etapas fundamentais - de deixar revelar o sentido da figura de Cristo no interior desta história que é salvífica para o crente.
Por isso é preciso não ser surpreendido pelas diferenças entre esta genealogia e a de Lucas (3, 23-28), que não ocorre por ocasião do nascimento de Jesus, como em Mateus, mas no início do seu ministério público. Trata-se, neste caso, de uma genealogia "ascendente": parte-se de Jesus - «supunha-se que era filho de José - para subir não a Abraão mas a Adão, através da fórmula «A filho de B», com 77 nomes (retomando sem dúvida o algarismo sagrado, 7). A última sequência da cadeia genealógica é o próprio Deus (filho «de Adão, de Deus»).
É claro que a intenção do evangelista não é documental nem arquivista, pelo menos segundo os nossos cânones: a sua intenção é teológica. Servindo-se de materiais da história de Israel e de fontes difíceis de identificar, Lucas quer realçar a universalidade («filho de Adão») e a divindade («Filho de Deus») de Jesus Cristo, tendo em conta igualmente o auditório do evangelista, que já não é composto antes de mais por judeo-cristãos, como para Mateus, mas sobretudo de gentios, isto é, cristãos de origem pagã; por isso é necessário de ir para além de Abraão e chegar até Adão, pai de todos os homens.
Como acontece muitas vezes nas genealogias do Gênesis ou dos antigos reis da Babilônia, ou nas sequências genealógicas de diversas civilizações do antigo Próximo Oriente, ou nas tradições beduínas e nômades, a sequências das gerações, ainda que recorrendo a fontes históricas, não tem uma finalidade historiográfica. Trata-se de uma verdadeira definição da identidade nacional, tribal, familiar e pessoas, das suas características e dos seus valores espirituais e tradicionais.
Como no Gênesis, como a sua genealogia de Adão (cap. 5) ou dos povos (cap. 10), Lucas não procura responder a questões de tipo estritamente histórico nem confrontar-se com a questão paleoantropológica: ele quer responder a questões teológicas: «Quem é Jesus de Nazaré?»; «Que sentido tem a história da salvação em relação a Ele?»; «Qual é o seu laço com as promessas dos patriarcas?»; «Qual é a sua relação com a humanidade?», e assim por diante.
É legítimo querer conhecer as fontes que permitiram aos dois evangelistas reconstruir estas genealogias; ainda que sejam antes de tudo "teológicas", não excluem o recurso a determinados dados da história bíblica e das tradições judaicas. Esta pesquisa, evidentemente muito complexa, aparece em alguns comentários aos Evangelhos e permite estudos específicos.
Cardeal Gianfranco Ravasi
Biblista, presidente do Conselho Pontifício da Cultura
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