O que pretendemos aqui é uma aproximação da Vida de Maria de Nazaré, para compreender a realidade do cenário social, familiar e religioso de sua época, com o intuito de ampliar o entendimento sobre o mistério da Encarnação do Verbo de Deus. A aproximação à Palestina do século I nos ajuda a contextualizar Maria na sua realidade histórica e existencial, para demonstrar a relação entre a história e o mistério em sua vida. Isso, para dizer que, na experiência de Maria, o cotidiano é justamente o lugar normal para o encontro com o Divino², pois ela nos ensina a viver no ordinário da vida humana o extraordinário da Presença de Deus. Mulher reflexiva que repassava os acontecimentos de cada dia no seu coração, repleto de fé e de amor, sua vida toda era de meditação amorosa e confiante em Deus.
Nos últimos anos, algumas pesquisas arqueológicas, históricas e literárias forneceram dados para possibilitar conhecer um pouco mais da Palestina do século I e as características da sociedade do tempo de Jesus³. É possível afirmar, com certo grau de confiabilidade histórica, que Maria era uma mulher pobre que viveu a maior parte de sua vida na pequena cidade de Nazaré, mais precisamente na região norte da Palestina denominada Galileia. Em sua época, sofria as discriminações impostas às mulheres daquela região: pouco acesso aos espaços públicos para aprender a escrever e ler, restrição ao espaço privado da casa, alguns riscos de abandono no caso de viuvez. Como judia Maria conhecia os preceitos da Torá e se autocompreendia à luz da Aliança com Javé, ouvia os relatos dos profetas, rezava os salmos, guiava a sua existência pelos escritos sapienciais4.
Na verdade, a vida da jovem de Nazaré não foi marcada por “grandes acontecimentos”. Ao contrário, foi uma vida simples e dura, no ordinário do cotidiano. Partilhou a situação social humilde da maioria das mães daquele povo, situação que o texto bíblico chama de tapienôsis (Lc 1,48). Ela é essencialmente a mulher do dia a dia. Para traçar a real personalidade dessa filha de Israel, há que se conhecer um pouco do seu curso cotidiano e de seus trabalhos diários5.
Do ponto de vista da estrutura familiar, as pesquisas históricas mostram que os judeus viviam em clãs, famílias grandes que viviam sob o poder da figura masculina. Nesses clãs, os papéis do homem e da mulher eram bem definidos. Como acontecia em grande parte das famílias mediterrâneas, a mãe tinha domínio maior dentro de casa e estabelecia fortes laços com seus filhos6.
Ela se levanta bem antes de clarear o dia (Mc 1,35; 16,2), são muitos os trabalhos domésticos e é preciso começar cedo. Naturalmente seu primeiro pensamento é para o Eterno, como era de rotina e mandava a religião da Aliança. Havia o costume de pronunciar uma berakhá 7 ou bênção por qualquer coisa pequena que perpassasse o cotidiano de todo o povo hebreu piedoso. Baruch Adonai, “Bendito seja o Senhor” por isso e por aquilo. Eram proferidos basicamente uma centena de berakhot por dia. Assim, Maria, tão logo abre os olhos, louva a Deus: “Bendito sejais vós, Eterno nosso Deus, rei do universo, que abris os olhos dos cegos”. Ela levanta seus braços, murmurando: “Bendito sejais vós, Eterno nosso Deus, rei do universo, que desatais o que está ligado”8. Olha então para o filho Jesus e para o marido José, que logo mais também se levantarão. Aliás, como não iriam acordar? Como dormem todos no mesmo cômodo, praticamente um ao lado do outro, basta que um se levante, para que os demais também acordem (Lc 11,7).
O pátio na frente da casa é um lugar delimitado por meio de um muro baixo. Um pátio comum a quatro ou cinco famílias, todos parentes de José: família de Tiago, de José, de Judas e de Simão, os ditos irmãos de Jesus (Mc 6,3). Todos são de ascendência real davídica, a portadora das promessas messiânicas (Mt 1,1). Maria tem também parentas e parentes. Além de pelo menos uma irmã (Jo 19,25) e de uma prima, Isabel (Lc 1, 36), ela tem em Nazaré algumas sobrinhas (Mt 13, 56). Ela e seu filho Jesus estão integrados ao clã de seu marido, com o qual, no entanto, nem sempre vivem bem (Mc 3, 20-21; Jo 7,5).
Pois bem, são esses parentes próximos, no máximo umas trinta pessoas, que frequentam o pátio coletivo, um lugar em que convive normalmente a família clânica. Nesse lugar Maria também realiza alguns trabalhos caseiros, e ali José trabalha em sua oficina. Encontram-se também nesse espaço alguns instrumentos de uso comum às outras casas: o forno do pão, o moinho doméstico de duas pedras, o pilão usado para esmagar olivas e a bacia para lavar as roupas. É igualmente no pátio que as visitas são recebidas. Por tudo isso, esse lugar se torna mais importante que a própria casa. De resto, a família de Maria, como a maioria das famílias do Oriente caloroso, gostava muito de viver ao ar livre 9.
A família biológica, pai, mãe, irmão, primos, sobrinho, cunhadas, controlavam seus membros de forma bem próxima. Mais importante que o indivíduo era o nome da família. Diante disso, é possível compreender a força do gesto de Jesus ao querer distinguir-se da tutela da família biológica e iniciar uma “nova família”, baseada, não mais em laços sanguíneos, mas na adesão à causa do Reino de Deus e na prática da fraternidade entre pessoas iguais. “Minha mãe e meus irmãos são todos aqueles que fazem a vontade do Pai (Mc 3,34)”. É possível imaginar o que significou também para Maria renunciar ao privilégio de mãe mediterrânea, que tinha controle sobre o filho no âmbito familiar, no seu lar, e se lançar publicamente no grupo dos seguidores de seu filho! Uma grande mudança: de educadora a discípula, de mãe a irmã mais velha na caminhada de fé10.
Márcia T. C. Miné Geraldo¹
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1 Mestre em Teologia pela PUC-Rio. Bacharel em Teologia pela Faculdade Dehoniana, Taubaté/SP. Especialista em Mariologia pela Faculdade Dehoniana/Academia Marial de Aparecida. Leiga, esposa, mãe e avó.
2 Cf. Clodovis BOFF, O cotidiano de Maria de Nazaré, 2009, p. 107.
3 Cf. Afonso MURAD, Perfil de Maria numa sociedade plural, in UNIÃO MARISTA DO BRASIL (org.), Maria no coração da Igreja. Múltiplos olhares sobre a Mariologia, 2011, p. 26.
4 Idem, p. 27
5 Cf. Clodovis BOFF, O cotidiano de Maria de Nazaré, 2009, p. 10.
6 Cf. Afonso MURAD, op. cit., p. 28.
7 A berakah é a dinâmica da espiritualidade do Antigo e do Novo Testamento (cf. Luiz, ROSA, Uma janela para o mundo bíblico, disponível em: www.abiblia.org/ver.php?id=1271, acesso em: 16/04/2017.
8 Para estas duas bênçãos, cf. Robert ARON, Così pregava l’ebreo Gesù, 1982, p. 55.
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