Por Ir. Afonso Murad Em Artigos Atualizada em 17 SET 2020 - 16H05

Maria na bíblia: panorama

As comunidades cristãs das origens fizeram um caminho de descoberta a respeito da figura de Maria, a mãe de Jesus. Vamos analisar os traços mais importantes deste processo.

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Já se fala sobre Maria no Antigo Testamento?

Grande parte dos estudiosos da Bíblia está de acordo neste ponto: não há nenhum texto nas escrituras judaicas, ou primeiro testamento, com a intenção explícita de fazer um anúncio antecipado sobre Maria. Na realidade, depois que Maria se tornou reconhecida na comunidade cristã, a partir do século 3, aconteceu uma releitura dos textos bíblicos. Ampliou-se o sentido original. Assim, algumas imagens e alegorias, como “a descendência da mulher que esmaga a cabeça da serpente” (Gn 3,15), passaram a ser compreendidas em relação à mãe de Jesus.

Nos escritos de Paulo não há referência direta a Maria. Somente o texto de Gálatas 4,4 faz uma alusão à mãe de Jesus, ao falar que Deus “enviou seu filho, nascido de uma mulher”.

Leia MaisBodas de Caná e Maria: os símbolos – Maria em João parte I Maria em Lucas: síntese Maria em Mateus e Marcos

No evangelho de Marcos, o primeiro a ser escrito, Maria aparece no meio dos familiares de Jesus, sem qualquer destaque. O evangelista mostra com clareza que, para Jesus, importa sobretudo uma nova família, não mais formada por laços de parentesco. A verdadeira família de Jesus será, de agora em diante, a dos seus seguidores, ou seja, os discípulos e discípulas que fazem a vontade do Pai.

Mateus acrescenta um dado novo. Ele prepara o anúncio da vida pública de Jesus com os “relatos de infância”, que estão centrados na figura de José, o homem justo que sempre age de acordo com o apelo de Deus. Assim, José acolhe a Maria como sua esposa e não tem relações íntimas com ela até o nascimento. Adota Jesus como seu filho, mesmo não sendo o pai biológico e protege a ambos dos perigos que surgem. Maria é apresentada como aquela que concebe pela ação do Espírito e está unida ao Filho, como mostra a expressão “o menino e sua mãe”, repetida 5 vezes.

O evangelho que mais se refere a Maria é Lucas. A começar pela quantidade dos relatos nos quais ela aparece ou se diz algo sobre a mãe de Jesus: anunciação, visita a Isabel, cântico do Magnificat, nascimento de Jesus, apresentação no templo, profecia de Simeão, desencontro no templo aos 11 anos, a vida em Nazaré, as palavras de Jesus sobre a família, o diálogo com a mulher na multidão e a presença de Maria na comunidade nascente, preparando a vinda do Espírito Santo.

Através de todos estes relatos, Lucas nos apresenta Maria como a figura da/o perfeito discípulo de Jesus, que ouve a Palavra de Deus, guarda-a no coração e dá frutos na perseverança.

Além disso, Maria trilha um caminho na fé. Totalmente entregue aos projetos de Deus, ela não entende tudo o que lhe acontece e, por isso mesmo, precisa continuamente meditar o sentido dos acontecimentos. Passa por momentos belos e difíceis, alegres e sofridos. O fato de ter que aprender o “jeito novo” de ver o mundo que Jesus propõe causa-lhe conflitos que lhe atravessam o coração como uma espada.

Como mulher proveniente de Nazaré da Galileia, Maria vive e anuncia a opção preferencial de Deus pelos pobres, tal como Jesus o vive e anuncia no sermão da planície. Por fim, Maria é uma pessoa especialmente contemplada pelo Espírito Santo, que a cobre com sua sombra na concepção de Jesus e atua na comunidade dos discípulos em Pentecostes, com línguas de fogo. “Nuvem” e “fogo” são os símbolos da presença de Deus junto de seu povo peregrino, desde a libertação do Egito. Nuvem quer dizer proteção e fecundidade. Já o fogo alude a energia, amor e vitalidade. 

“Este é perfil de Maria em Lucas: perfeita discípula, peregrina na fé, sinal da opção de Deus pelos pobres, mulher contemplada pelo Espírito Santo.” Ir. Afonso Murad

João completa o perfil de Maria em Lucas. acrescentando duas outras características. Ao apresentar Maria no início da missão de Jesus (bodas de Caná) e no momento derradeiro (junto à cruz), expressa que é uma pessoa significativa para Jesus e sua comunidade. Nos dois relatos, Jesus não a chama de “mãe”, e sim de “mulher”, como o faz com outras mulheres importantes, como a Samaritana e Madalena.

Em Caná, Maria é apresentada como a “pedagoga da fé”, que orienta os servidores para “fazer tudo o que Jesus disser”. Ajuda a reunir os discípulos em torno a Jesus. Possibilita a realização do primeiro sinal, que inicia o processo de acreditar em Jesus e compreender quem ele é. Já na cruz, Maria aparece junto com as mulheres e o discípulo amado, perseverante na fé, no momento em que cessam os sinais. Por vontade de Jesus, há uma adoção recíproca. Ela assume a missão de mãe da comunidade cristã, representada pelo “discípulo amado”, e a comunidade a acolhe como tal.

O texto de Apocalipse 12 não é originalmente mariano. A mulher, revestida de sol, com as estrelas debaixo dos pés e as doze estrelas significa, em primeiro lugar, a comunidade-igreja, que já experimenta neste mundo os frutos da glorificação de Jesus. De outro lado, também sofre os ataques das forças do mal na história, é frágil, vive no deserto (lugar de tentação e de encontro com Deus) e sente a solidariedade da Terra.

Como aconteceu com textos do Antigo Testamento, houve posteriormente uma releitura, dando-lhe uma conotação mariana. Ela se apóia no fato de Maria ser mulher e mãe do messias. Nas comunidades cristãs do século 4, nasce assim a intuição de que Ela participa, de forma singular, da glorificação que será concedida a todos os seguidores de Jesus.

O perfil bíblico de Maria é fundamental para elaborar uma mariologia consistente, equilibrada e centrada em Jesus. A partir dele, corrige-se os exageros do devocionismo e do maximalismo mariano. Estabelecem-se assim elementos para que o diálogo possa se enriquecer com outras Igrejas cristãs.

:: Ir. Murad elaborou um Curso de Mariologia em 10 vídeos, disponível no Youtube: o Trem da Mariologia. Assista aqui ao segundo capítulo da série, contendo os primeiros elementos para compreensão de Maria na Bíblia:

Ir. Afonso Murad, Marista
É doutor em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.
Professor de Teologia no ISTA (Instituto Santo Tomás de Aquino) e na Faculdade Jesuíta (FAJE), em Belo Horizonte.


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