Qualquer reflexão contemporânea que trate de visões e aparições exige uma abordagem transdisciplinar. Isso não implica reduzir a experiência com Deus, que quer se comunicar com a humanidade, num protocolo de possibilidades que julgamos cabíveis. Isso seria abandonar a compreensão de que Deus é maior que qualquer linguagem que conheçamos e, por isso, só Ele sabe a melhor forma de se dirigir a nós. Mas nem por isso tudo o que se diz que é proveniente do “alto” deve receber o selo de “revelação particular”. É necessária uma averiguação especializada e um discernimento eclesial. Por isso que falamos de uma abordagem transdisciplinar.
Assim, a grande indagação recai sobre o ser humano (tanto um indivíduo, quanto um grupo particular de pessoas ou a humanidade como um todo), enquanto capaz de ser destinatário de uma mensagem que o transcende. Somada a essa questão medular, também nos perguntamos pela transcrição dessas experiências: é possível registrar algo tão inefável? Ainda: perguntamos se não poderíamos cair no equívoco de condicionar tais comunicações celestes a nosso bel prazer, fazendo dos elementos simbólicos, presentes nessas experiências, um veículo que propague uma visão de Igreja totalmente desfocada da Tradição e de um mundo com cores tão alarmantes que instaure pavor? São muitas as questões que nos impõem uma abordagem atenta, transdisciplinar e conforme à Tradição. Assim, é essencial ouvir São Paulo que nos diz: “Não apagueis o Espírito, não desprezeis as profecias, mas examinai tudo e guardai o que for bom” (1Ts 5,19-20).
Na busca de examinar tudo e guardar o que é bom é que dirigimos nossa atenção às Sagradas Escrituras, pois nelas não temos apenas palavras de Deus, mas, sobretudo, ela é a Palavra de Deus, uma comunicação salvífica mediada pelo Espírito Santo que atualiza nosso vínculo com a Revelação de Deus, que alcançou sua plenitude em Jesus Cristo e foi consignada em textos que acolhemos como fontes de nossa fé.
Das fontes de nossa fé, vamos nos ater à questão das visões e aparições no Novo Testamento.
O Novo Testamento relata com abundância várias comunicações divinas através de visões. Nelas encontramos angelofanias (Mt 1,20; 2,13-19; Lc 1,11-28; 21,9-13; At 1,10 – e outras); o evento da Transfiguração do Senhor (Mc 9,2-8; Mt 17,1-9; Lc 9, 28-36); visão de imagens simbólicas (At 10,9-16; Ap 4,1-22,5). Destaque particular deve ser dado às “visões e revelações de Paulo”, sobretudo seu encontro com Jesus Ressuscitado no caminho de Damasco².
“Em todas essas visões vale ressaltar que o acento principal não recai sobre a visão em si mesma, mas sobre a mensagem que ela quer comunicar. Existem coisas que o ser humano, sozinho, é incapaz de compreender. Por isso, Deus mesmo, de forma misteriosa, mas compreensível, nos ajuda a alcançar algo de seu desígnio, algo que nossa inteligência sozinha não alcançaria.”
Tomemos dois exemplos: poderiam Maria e José chegarem, por si mesmos, a compreensão de uma concepção virginal? Os Evangelhos da Infância, indiretamente, nos dizem que não, pois Maria questiona o como se dará essa concepção (Lc 1,34) e José é esclarecido pelo anjo, que lhe diz que “o que nela [Maria] foi gerado vem do Espírito Santo” (Mt 1,20). Deus vem, de forma misteriosa, mas compreensível, em direção de Maria e José (e, sobretudo, dos destinatários dos Evangelhos da Infância), para ajudar num mergulho mais profundo no mistério da encarnação do Verbo.
O segundo exemplo que elencamos é a Transfiguração do Senhor, em que a “presença de Elias e Moisés” nos remete aos “profetas e à Lei”, ou seja, à Revelação que recebemos nos textos do Antigo Testamento que alcança sua plena expressão de verdade e de vida em Jesus. Também é muito incisiva a ordem que é dada pela “voz do Pai” de escutar seu Filho bem-amado. Enfim, o Filho é a Mensagem por excelência, a Palavra do Pai, no poder do Espírito Santo, para toda a humanidade.
Os dois exemplos nos servem de modelo para vermos que, mais do que a visão do anjo ou a da glória do Senhor Jesus sobre o monte, o centro da questão está no conteúdo da fé que se quer revelar nessas circunstâncias. O mais importante não é o que foi visto, mas o conteúdo revelado.
Dessas experiências visionárias, um destaque todo singular deve ser dado à experiência do Cristo Ressuscitado, que se revela num corpo glorioso, até o momento de sua ascensão.
Sobre o evento da ressurreição do Senhor, em si mesmo, nada encontramos no Novo Testamento. O que temos é o encontro do túmulo vazio e as aparições do Ressuscitado. Sobre as aparições do Ressuscitado, o texto mais antigo que fala desses encontros está em 1Cor 15,3-8. Mas antes, vejamos brevemente os Evangelhos de Marcos e de João.
No relato de Marcos (sem contar o epílogo, Mc 16-9-20, que foi um acréscimo) não encontramos aparições de Jesus Ressuscitado. Nos é dito que três mulheres, Maria de Mágdala, Maria a (mãe? irmã? esposa? filha?) de Tiago e Salomé, realizam, ao nascer do sol do primeiro dia da semana, uma visita ao sepulcro. Elas vêem a pedra da entrada do sepulcro removida, e um varão de vestes brancas que lhes dá a entender que o crucificado ressuscitou, já que ele não está ali, e que comunicassem aos discípulos e a Pedro que devem ir vê-lo na Galileia (notar ao mesmo tempo a ordem que antepõe os discípulos como conjunto, mas que também destaca Pedro pela menção explícita de seu nome). No entanto, presas ao medo, elas não o fazem. Ali termina a versão original do texto marcano³.
No Evangelho de João vemos certa reticência com essa temática. Ele não se desvia de seu foco, pois quer acentuar que, quem vê Jesus na carne, vê o Pai (Jo 12,44; 14,9), como também, afirma que quem vê o Filho e crê nele tem a vida eterna (Jo 6,40). O Filho é a visão do Pai e acesso à vida. Contudo, diferente de Marcos, em João 20 encontramos as aparições de Jesus Ressuscitado aos seus.
Das aparições do Cristo ressuscitado lembramos que: Jesus aparece a Maria Madalena (Mc 16,9); às piedosas mulheres (Mt 28,9); aos discípulos na estrada de Emaús (Lc 24,15); aos Apóstolos reunidos no Cenáculo (Mc 6,14; Mt 28,17); a Paulo (At 9,3-7) e a mais de quinhentos irmãos (1Cor 15,6)4.
Devemos deixar bem claro que “A aparição pascal é, portanto, uma experiência fundamental que garante (qualifica) a identidade dos apóstolos como testemunhas da ressurreição de Jesus”5.
Os Apóstolos fazem uma experiência que não está no nível do reavivamento de um cadáver, como no caso de Lázaro (Jo 11,1-46), como também não se encontram com um fantasma (Lc 24,36-49). Eles se encontram com Jesus que venceu a morte e, vivo, se deixa ver num corpo glorificado, ou seja, um corpo renovado pelo poder do Espírito Santo. Essa afirmação traz consigo a impossibilidade de definir o que seja o que seja esse corpo glorificado a partir de nossa compreensão biológica. O corpo do Ressuscitado é real, mas de uma ordem divina, que transcende nossa capacidade de definição; palpável, mas não submetido às nossas leis da física; visível, mas não de modo generalizado, pois Ele se mostra de acordo com sua vontade .
Essa experiência é tão visceral que, unida à vinda do Espírito Santo, transforma completamente a vida dos Apóstolos e de todos os que foram escolhidos como testemunhas do Ressuscitado. O inigualável valor dessa experiência não se resume ao que foi visto, mas a uma experiência com o Senhor que venceu a morte.
Cabe-nos lembrar que o dogma da Assunção de Maria à glória celeste está intimamente ligado à compreensão do corpo glorificado de Jesus, por mais difícil que seja uma descrição dessa corporeidade gloficada. Por conseguinte, a Assunção de Maria fundamenta e justifica qualquer possibilidade concreta de uma aparição da Virgem Maria em qualquer tempo e lugar . Mas esse assunto destinamos aos outros pesquisadores/as que continuarão essa reflexão na série Mariofanias.
¹ Frei Jonas Nogueira da Costa é frade franciscano, presbítero e pertence a Ordem dos Frades Menores. Doutor em Teologia Sistemática (pesquisa em Mariologia) pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE. Membro da Equipe de Assessoria Teológica da Academia Marial de Aparecida e professor no curso de pós-graduação em mariologia da Faculdade Dehoniana (Taubaté/SP).
² DE FIORES, Stefano. Vidente. In: DE FIORES, Stefano; GOFFI, Tullo. Dicionário de espiritualidade. 3ed. São Paulo: Paulus, 2005, p. 1180.
³ MÍGUEZ, Néstor O. O cânon como pacto. REVISTA DE INTERPRETAÇÃO BÍBLICA LATINO-AMERIACANA. Pactos de vida e pactos de morte. Petrópolis: Vozes, n. 61 – 2008/3, p. 33 [377] – 34 [378].
4 PERRELLA, Salvatore M. Le Mariofanie. Per una teologia delle apparizioni. Padova: Edizioni Messaggero di Padova, 2009, p. 82.
5 PERRELLA, Salvatore M. L’assunzione e le mariofanie: quale relazione? In: TONIOLO, Ermano M. (org.). Il dogma dell’assunzione di Maria. Problemi attuali e tentativi di ricomprensione. Atti del XVII Simposio Internazionale Mariologico (Roma, 6-9 ottobre 2009). Roma: Edizioni Marianum, 2010, p. 352.
6 PERRELLA, Salvatore M. La “Benedetta” e il “Maledetto”. Tra mariofanie e demonologia. Cinisello Balsamo: San Paolo, 2018, p. 94.
7 PERRELLA, Salvatore M. L’assunzione e le mariofanie: quale relazione? In: TONIOLO, Ermano M. (org.). Il dogma dell’assunzione di Maria. Problemi attuali e tentativi di ricomprensione. Atti del XVII Simposio Internazionale Mariologico (Roma, 6-9 ottobre 2009). Roma: Edizioni Marianum, 2010, p. 462.
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