Na recém-publicada Carta Encíclica Laudato Si (Louvado Seja – Sobre o Cuidado da Casa Comum), ao falar sobre (...) “os gemidos da irmã terra, que se unem aos gemidos dos abandonados do mundo”, o Papa Francisco contextualiza dizendo que “o problema é que não dispomos ainda da cultura necessária para enfrentar esta crise (ecológica, grifo meu!) e há necessidade de construir lideranças que apontem caminhos, procurando dar respostas às necessidades das gerações atuais”. (n.53)
Esse oportuno argumento desenvolvido pelo Bispo de Roma, mais que se alinhar, soma-se à indagação feita por Jennie Moore e William Rees, ambos da University of British Columbia, no estudo “O Estado do Mundo – 2013”, quando então indagam: “O crescimento da atividade humana hoje é alimentado, em grande parte, pela liquidação do capital natural, incluindo os ecossistemas essenciais, e pelo sobre uso dos mecanismos de assimilação de resíduos. Em suma, a atividade humana está explorando recursos naturais mais rapidamente do que eles podem se regenerar. Uma espécie de fato inteligente se arriscaria a destruir permanentemente os próprios ecossistemas que a sustentam, em troca dos benefícios cada vez mais questionáveis do crescimento desigual?”.
Sobre essas questões, convém apontar que ocupa lugar de destaque nas discussões em torno da crise ecológica a premissa de que ações antrópicas são, em larga medida, fatores centrais que desencadeiam o desequilíbrio ambiental, fruto, numa perspectiva mais ampla, do crasso engano cometido pela humanidade ao estabelecer o materialismo como sinônimo de progresso.
Dono de uma visão míope, por enaltecer a conquista material como suprassumo de prosperidade, o homem moderno vem atuando de forma distinta em duas frentes: de um lado, dedica-se ao serviço de explorar ao máximo os recursos da natureza para o abastecimento do mercado de consumo global, do qual se serve para “alimentar” sua sanha consumista; do outro, alinhando economia (atividade) à tecnologia (bens de capital e conhecimento), sob a tutela antropocêntrica e tecnocrática, tem sido capaz de expandir a seu bel-prazer as bases da produção física da economia mundial, pouco se importando com o passivo ambiental gerado.
Contudo, ao mesmo tempo em que domina as diferentes formas de tecnologia pela inteligência, se mostra, paradoxalmente, desprovido dela ao não promover a preservação da natureza, necessária à sua própria sobrevivência; preferindo, antes, de forma imediata, auferir os benefícios do materialismo, se regozijando no consumo em curto prazo, abrindo mão do equilíbrio ambiental e ecológico, indispensável ao bem-viver, no longo prazo.
Se há, portanto, uma marca antropocêntrica – se assim podemos chamar – de torpe e nefasta consequência deixada no seio da civilização pelo homem moderno ao longo desses últimos 200 anos, sem espaço a dúvida, essa marca se deve ao que acabamos de aludir acima, acrescido da não menos estúpida conduta mercadológica (mais produção, mais consumo, mais degradação ambiental) que está fazendo desequilibrar o planeta pela exploração desenfreada dos recursos que emanam da casa comum (Gaia) que nos acolhe; razão pela qual o semblante da natureza encontra-se totalmente desfigurado, uma vez que a noção de limites (fronteiras ecológicas) foi e tem sido completamente ignorada.
A liquidação do capital natural, talvez o “produto” mais ilustrativo desse desequilíbrio e dessa desfiguração citadas, nunca foi tão intensa e provocativa, colocando o interesse econômico e os rendimentos financeiros de poderosos grupos corporativos que ganham com a destruição da natureza (vide os madeireiros ilegais da Amazônia, por exemplo), acima de qualquer razão, acima de qualquer prática de bom senso.
De tal maneira que, hoje, falar em superação dessa problemática requer se pensar antes numa única alternativa: empenhar esforços para a completa reversão do que se entende por cultura do desperdício e da exploração material sem limites da natureza, fazendo surgir, antes, um novo homem dotado do florescimento das sensibilidades ecológicas que cresce no seio dos povos; principalmente daqueles que, historicamente, tem sido os mais afetados pelas crises (ambiental e social) ora em curso.
Assim sendo, as palavras do Pontífice mencionadas acima são pormenorizadamente cirúrgicas: nos falta realmente uma cultura que promova em cada indivíduo a noção definitiva de que não somos (e jamais seremos) donos do planeta, mas tão somente meros inquilinos, hóspedes de passagem da Casa Mãe Natureza.
Consoante a isso, é importante frisar uma assertiva: quando a casa não é nossa, é aí que temos de demonstrar e expressar, sob todas as circunstâncias, o máximo de cuidado possível com aquilo que não nos pertence, mas que, em nome da racionalidade, está disponibilizada ao nosso uso.
É desse tipo de pensamento (e também de ação) que tanto carecemos; é dessa cultura específica que o Papa Francisco fala que está nos faltando. No entanto, permanecemos indiferentes a isso tudo, uma vez que não são poucos aqueles que colocam o interesse pessoal acima da realidade coletiva, ignorando os fatos, menosprezando as crises, ainda que, como aludimos, para o bem da humanidade, a sensibilidade ecológica esteja crescendo.
Por fim, corroborando o argumento expresso na Carta Encíclica, nos falta sim essa ampla e significativa cultura (entendida como base de tudo) que promova essencialmente uma mudança de atitude/ação/prática, remexendo nos valores éticos e morais de cada um, remodelando a atual relação do homem com o mundo; do indivíduo, especialmente vestido na pele de consumidor, com a natureza; do cidadão consciente e moderado com a terra que pisa, com a água que bebe, com o ar que respira, com o alimento que colhe para se alimentar, com a biodiversidade que o abraça, com os animais que encontra pelo caminho, com a vegetação que semeia.
Por isso, um novo ser humano precisa ser “gestado”, capaz de enxergar na Mãe Natureza a excelência maior para assim agir com o cuidado que ela tanto necessita e requer, para o bem do próprio homem, ainda que esse não “tenha sido educado para o reto uso do poder” (n.104), usando as palavras do sacerdote italiano Romano Guardini (1885-1968), citado na encíclica papal.
Nesse pormenor, as palavras de Francisco novamente pedem passagem e se apresentam muito oportunas: “não haverá uma nova relação com a natureza, sem um ser humano novo” (n.118).
Não tenhamos dúvidas, ademais, de que, se fácil essa conversão de rumos não será, “a esperança”, por sua vez, fará a sua parte, “convidando-nos a reconhecer que sempre há uma saída”. (n.61).
Marcus Eduardo de Oliveira é economista especializado em Política Internacional
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