A leitura de Gênesis 3,1-8 é muito conhecida por nós. Mas repararam no grande ensinamento que ela tem sobre o nosso autoconhecimento? Nela narra-se o porquê de estarmos assim e as consequências do pecado original no homem, que foi criado por Deus à Sua imagem e semelhança.
:: Ter uma vida nova: quem me dera, mas Deus me livre!
Aprofundar na nossa própria identidade e tomar consciência de quais situações e elementos “atuais” estão nos afastando da nossa própria identidade torna-se um exercício urgente nos dias atuais, especialmente pelo mau uso que às vezes fazemos da tecnologia, a qual, apesar de ser neutra, pode nos levar a afastar-nos de nós mesmos e, em última instância, de Deus. Ora, as nossas relações são cada vez mais frágeis e o mundo virtual pode nos levar a experimentar vazios e, às vezes, até cair na ilusão, não somente do “eu penso, logo existo”, mas também do “se eu compartilho no Facebook e dependendo dos ‘likes’, eu existo”.
O homem, à diferença dos demais seres ao seu redor, se situa diante de si mesmo como consciente do seu entorno. A isto se soma a consciência que ele tem de si mesmo, do seu fazer, do seu ser. Ele é capaz de reflexão, de voltar-se sobre si mesmo. Como ser autoconsciente, o ser humano se descobre aberto a outros como ele mesmo. Sou único e, ao mesmo tempo, não sou solitário. É o que afirma, numa frase simples, o trapista: “Nenhum homem é uma ilha”. Experimento-me aberto ao encontro. É assim que podemos afirmar que o ser humano é um ser único com uma altíssima dignidade, por ser criado à imagem de Deus e também é um ser para o encontro, por ter sido criado à semelhança do Filho, do Verbo Encarnado.
As faces da ilusão sobre cair ou viver fora de nós mesmos, fora da nossa identidade, é um drama, como nos explica Pascal: “O homem tem duas vidas: uma é a vida autêntica; a outra, a imaginária, que vive na opinião, sua ou dos outros. Trabalhamos sem descanso para enfeitar e conservar nosso ser imaginário, e descuidamos do verdadeiro” (Pensamentos, 147). Exemplificando algumas destas ilusões: acreditar que sou meu corpo, ou meus pensamentos, ou meus sentimentos, ou sou só minhas realizações. Todos nós às vezes erramos ao acreditar que “somos”, ao colocar nossa valoração unicamente nestes aspectos, em vez de reconhecer nossa identidade, quem somos e para o que fomos realmente criados.
O pecado nos afasta de Deus, nos faz reconhecermos quebrados por dentro, com a nossa imagem escurecida e a nossa semelhança perdida e, como consequência, sem o autodomínio de nossas faculdades. Talvez a primeira ruptura que experimentamos é a ruptura conosco mesmos; descobrimo-nos indignos, o que nos faz reconhecer que a origem de todas as rupturas é a ruptura com Deus. Foi exatamente o que aconteceu com o pecado de Eva: ela experimentou a vergonha, pois tinha sido infiel a Deus e se deixou levar pelas mentiras da serpente.
Por isso, esta passagem do Gênesis é tão iluminadora para o nosso autoconhecimento, é uma pérola antropológica para a nossa vida cristã. Para conhecer-me, preciso que Deus me mostre quem sou, pois “o mistério do homem, só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente” (Gaudium et Spes, 22). Este esclarecimento grandioso também contempla a nossa contingência, o nosso pecado, e é por isso que devemos acreditar, como nos disse Pascal: “Sem este mistério - o do pecado original -, o mais incompreensível de todos, somos mais incompreensíveis para nós mesmos” (Pensamentos, 438).
Não tenhamos medo de ser autênticos, para que o Senhor Jesus ilumine todo o nosso ser. Abramos as portas do nosso coração para Ele, que está constantemente batendo à porta do nosso coração possa entrar e iluminar a nossa vida, reconciliando também a nossa fraqueza.
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