Não podemos continuar negando, ao longo da história brasileira, que o mito da democracia racial, além de ser um mal em si mesmo, traz consigo uma infinidade de outros mitos paralelos, que segundo o sociólogo Florestan Fernandes, “concorrem para esconder ou para enfeitar a realidade” (FERNANDES, 2007, p. 21) e os problemas raciais brasileiros.
Esses mitos não possuem uma sustentável base objetiva. A finalidade deles é, tão somente, desqualificar as mulheres e os homens negros. O povo negro continua sendo tratado pelas autoridades brasileiras com muita hostilidade. Não raramente, deparamos, aqui no Brasil, com a romantização do racismo. Esta, por sua vez, danifica as condições humanas das mulheres e homens negros. Os negros, no Brasil, de forma particular, não têm, nas palavras de Florestam Fernandes, “oportunidades concretas de ascensão social” (FERNANDES, 2007, p. 28).
Até quando nós, negras e negros brasileiros, seremos hostilizados? Quando seremos, realmente, socializados? Por mais quanto tempo nós, mulheres e homens negros, teremos que tolerar a discriminação racial e social? Não podemos esquecer que aqui, lamentavelmente, os preconceitos raciais e sociais são dissimulados e, consequentemente, as discriminações raciais e sociais são indiretas.
O fato é que o status quo das mulheres e dos homens negros brasileiros, desde o Brasil colonial, continua de forma indefinida. A sociedade brasileira, ainda atuando sob a luz do colonialismo, permite a persistência da desigualdade racial que impede a ascensão das mulheres e homens negros. A anulação das mulheres e dos homens negros atentam contra a democracia brasileira, contra os movimentos sociais voltados para a democratização da relações raciais e sociais e, por fim, não menos importante, atenta contra a mobilidade social.
Leia MaisDemocracia Racial: Um conceito logicamente falaciosoQue importância se tem dado, na atualidade fluida brasileira, para a coletividade negra e a democracia racial? Que relevância tem a causa do movimento negro Brasil afora para o “espaço econômico, sociocultural e político?” (FERNADES, 2007, p. 28).
O meio negro encontra-se sem suporte. Os negros não podem e nem conseguem crescer e expandir-se sozinhos. Em uma sociedade excludente como a nossa, as mulheres e os homens negros são tratados com hostilidade e muita incompreensão. A ordem da sociedade nacional brasileira aposta sempre na tolerância zero quando as questões vigentes são as mulheres e os homens negros.
É falacioso, portanto, na maioria das vezes, o discurso social brasileiro em favor das igualdades raciais e sociais, justiça para todos e reconhecimento coletivo. No Brasil colonial e no Brasil de hoje, as mulheres e os homens negros continuam do lado de fora. Continuam elas e eles sendo vistos como as/os “diferentes”. A igualdade entre brancos e negros deixa muito a desejar.
Esse denominador comum está longe de um ponto de equilíbrio. Na equação brancos e negros brasileiros, o resultado da conta nunca é redondo. Infelizmente, por causa da imoralidade social, cultural, étnica, religiosa e, sobretudo, política, a convivência entre brancos e negros, na atual sociedade brasileira líquido-moderna, é cada vez mais difícil.
Quem realmente está preocupado com as ambições e frustrações das mulheres e dos homens negros? Talvez, nem os próprios negros e negras estejam preocupados com isso. À sombra do mito da democracia racial, vemos dia após dia a condição humana das mulheres e homens negros sendo subestimada.
No Brasil, em plena luz do dia, negras e negros de todas as idades são explorados, ignorados, postos em xeque por causa do crescente preconceito e da discriminação raciais. Argumentos estereótipos justificam, a todo o momento, tais atitudes, orientações e comportamentos. Quanto ao malogro das mulheres e dos homens negros brasileiros, é sempre atribuído aos “elementos ancestrais da cultura” (FERNANDES, 2007, p. 31).
Há quem diga que "os negros são fracassados porque são malandros, não querem nada com nada. Só querem beber cachaça e rebolar nas rodas de samba". Será? O fato é que, na sociedade brasileira, diz Florestan Fernandes, “o negro vive nos limites de sua natureza humana e tem que aceitar e submeter-se às regras do jogo, elaboradas para os brancos, pelos brancos e com vista à felicidade dos brancos” (FERNANDES, 2007, p. 31). A sociedade colonial foi montada para o branco. A visão e a mentalidade que os brasileiros têm do negro, o outro “diferente”, são coloniais. Não há como negar.
Assim sendo, segundo Florestan Fernandes, “a nossa história também é uma história do branco privilegiado para o branco privilegiado” (FERNANDES, 2007, p. 33). Mas há também muitos brancos à margem do mundo social criado pelo branco. Como se explica isso? É verdade! Há muitos brancos excluídos e marginalizados. O fato é que eles são brancos na pele. Mas, socialmente falando, eles não são brancos, consequentemente, são socialmente negros.
Nas palavras do Sociólogo Florestan Fernandes, “o negro permaneceu sempre condenado a um mundo que não se organizou para tratá-lo como ser humano e como ‘igual’” (FERNANDES, 2007, p. 33). O branqueamento psicossocial e moral no interior da sociedade brasileira é bastante forte. Lamentavelmente, para garantir seu lugar ao sol, muitos negros “tiveram de sair de sua pele, simulando a condição humana padrão do mundo dos brancos” (FERNANDES, 2007, p. 33). A autonegação das mulheres e dos homens negros, para serem aceitos e reconhecidos como protagonistas de sua própria história na sociedade brasileira classista e excludente, é uma vergonha.
O “imperialismo da branquitude” (FERNANDES, 2007, p. 34) precisa acabar. A sociedade brasileira, particularmente aqueles e aquelas que a governam, precisa romper com o passado colonial brasileiro. Estamos em um novo tempo. Como podemos falar de unidade nacional excluindo os “diferentes”? As diferenças culturais e étnicas sempre vão existir entre os povos. No entanto, a intolerância para com os outros “diferentes” não precisa mais continuar.
O Brasil, de forma particular, e o mundo, de forma geral, são racialmente heterogêneos. Atualmente, no Brasil e no Mundo, as mulheres e os homens negros precisam, o tempo todo, de autoafirmação e autorrealização para garantirem sua sobrevivência. Sem autoafirmação e autorrealização, as mulheres e os homens negros brasileiros se perderão como raça e como seres humanos portadores de cultura. “As portas do mundo dos brancos não são intransponíveis” (FERNANDES, 2007, p. 35).
No entanto, seria imprudente de nossa parte negar: no Brasil, as mulheres e os homens negros, para atravessarem as portas dos brancos, estão sendo submetidos a um inapelável “processo sistemático de branqueamento” (FERNANDES, 2007, p. 35).
A visão pobre e monolítica que a elite branca brasileira tem da economia, da sociedade e da cultura tem atentado contra a democracia cultural, étnica, racial, social, moral e religiosa. Não adianta dissertar a respeito da soberania nacional, sobre o nacionalismo patriótico e sobre a brasilidade, se as mulheres e os homens negros, e outros seres humanos “diferentes”, continuam sendo mantidos do lado de fora da sociedade e do mundo em que vivem.
O Brasil é um país democrático, e sua sociedade é uma sociedade “racial e culturalmente heterogênea” (FERNANDES, 2007, p. 36). Assim sendo, digamos não ao racismo e à política de branqueamento das mulheres e homens negros brasileiros.
Bibliografia
FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos / Florestam Fernandes; apresentação de Lilia Moritz Schwarcz. – 2ª ed. revista – São Paulo: Global, 2007.
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