Brasil

Carolina Maria de Jesus clamava a Deus que a livrasse da fome

No mês em que celebraria 111 anos, história da escritora mineira ressalta a presença da religiosidade em seu cotidiano

Karla Maria (arquivo pessoal)

Escrito por Karla Maria

21 MAR 2025 - 08H40 (Atualizada em 21 MAR 2025 - 12H30)

“A favela hoje está em festa. Vai ter uma procissão. Os padres enviaram uma imagem de Nossa Senhora. Quem quer, a imagem permanece 15 dias em cada barracão. Hoje estão rezando o terço na praça. A procissão vai até o ponto do bonde. No barraco da Chica estão dançando”, registrou Carolina Maria de Jesus, em seu diário 'Quarto de despejo'. Era 25 de outubro, de algum ano, da década de 1950.

Quarto de Despejo, o livro de estreia de Carolina Maria de Jesus, foi lançado pela Livraria Francisco Alves em agosto de 1960 e, devido a seu estrondoso sucesso, teve oito reimpressões no mesmo ano. Em menos de 12 meses, mais de 70 mil exemplares foram vendidos — uma tiragem bem-sucedida, na época, era de aproximadamente 4 mil exemplares.

Se viva estivesse, esta Maria completaria 111 anos neste mês de março. Seria seu aniversário! “Em seu diário, eu queria ler que esse dia foi maravilhoso. Que a mesa estava farta! Que a senhora estava linda com seu vestido feito com um pedaço do céu cheio de estrelas, dançando valsas vienenses. Que é o que a senhora sempre quis, merecia e merece. Eu espero que onde a senhora estiver que tudo isso tenha sido realizado. Quero que a senhora saiba que nossa vida aos poucos está melhorando. E logo vamos sair dessa situação que, pra senhora, foi tão dolorosa. Te admiro! Te amo!”, escreveu a neta de Carolina, Adriana Jesus, em homenagem à avó.

Morreu pobre em 13 de fevereiro de 1977, antes dos cem anos que desejara viver para ler todos os livros do mundo. Sua literatura, contudo, continua viva e produzindo impactos em seus leitores, na sociedade brasileira.

Reprodução/ Wikipedia
Reprodução/ Wikipedia

Religiosidade, “escrevivência” e o cotidiano da favela

“A escrita para Carolina pode ser tomada como uma forma de dar significado, de compreender seu cotidiano. Por meio das palavras, das enunciações e/ou reflexões, Carolina enxergava o mundo e, ao fazê-lo, se via como sujeito histórico, como personagem de uma trama”, avaliaram as historiadoras Maria Antônia Marçal e Vanda Fortuna Serafim, da Universidade Estadual de Maringá, em artigo intitulado EscreviVência: a religiosidade em Carolina Maria de Jesus.

O conceito de “escrevivência” foi cunhado pela escritora Conceição Evaristo, outra mineira negra, que teve sua literatura reconhecida e difundida com a chegada da maturidade. De suas obras, assim como dos textos de Carolina Maria de Jesus, ecoam vozes de mulheres negras, de suas experiências.

“Mas quando esse discurso falado ou escrito carrega a nossa subjetividade, justamente porque ele nasce num lugar social, num lugar de gênero, num lugar racial diferente, ele traz determinadas peculiaridades que aquele que escreve de fora, por mais que seja competente do ponto de vista intelectual ou emocional, não vai trazer. Ele não traz uma carga de quem escreve de dentro”, escreveu Evaristo em 2020, avaliando os sentidos produzidos por suas obras.

A voz da mineira de Sacramento, em Quarto de Despejo, ecoa ao lado da presença de Deus, e de um modo próximo, com “diálogos” sem fim entre seus questionamentos e aquilo que sente ou vive, como resposta de Deus.

Seja na oração que clama por proteção ou na ironia que desconjura a pobreza, a fome que lhe invade os dias, ela sempre o convoca para a lida diária. “Será que Deus vai ter pena de mim hoje? Será que arranjo dinheiro? Será que Deus sabe que existem as favelas e os favelados passam fome?”, pergunta Carolina, na página 48, de seu livro (10ª. Edição — Ática).

“Sua narrativa parece se mover num universo marcado pelo catolicismo, espiritismo e religiões afro-brasileiras. Sendo esta última com menor intensidade. A favela é, para ela, o inferno, e a cidade personificada como o paraíso”, avaliam as historiadoras Marçal e Serafim.

Reprodução/ Wikipedia
Reprodução/ Wikipedia

Uma vida marcada pela escrita e pela luta

Carolina Maria de Jesus nasceu em 14 de março de 1914, na pequena cidade de Sacramento, interior de Minas Gerais. Como escritora, foi descoberta tardiamente, aos 43 anos, em 1958, na extinta favela do Canindé, em São Paulo (SP), onde hoje fica o Estádio do Canindé, da Associação Portuguesa de Desportos. Seu descobridor foi o jornalista Audálio Dantas, então repórter do diário Folha da Noite, de maneira acidental. Ambos se conheceram quando ele trabalhava em uma reportagem sobre a favela.

Negra, mãe solteira de três crianças, catadora de papel e semianalfabeta, essa improvável escritora havia estudado apenas até a 2ª série do curso primário no Colégio Allan Kardec, do Grupo Espírita Esperança e Caridade, na sua cidade natal. Era, então, uma mulher que descrevia em cadernos encontrados no lixo, meio sebosos, seu percurso desde que deixou Sacramento, aos 17 anos, até chegar à capital paulista, em 1947.

Os cadernos acumulados guardavam memória de 15 anos e eram preenchidos em uma tentativa imaginária de escapar das dificuldades diárias e do nervosismo que a tomava quando a fome era intensa. “Enquanto escrevo, vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes de brilhantes. Que a minha vista circula no jardim, e eu contemplo as flores de todas as qualidades”, revela um trecho extraído deles.

“Seria mais uma das milhares de mulheres que existem pelo país, não fosse o fato de dar voz àquilo que vivia e via na favela. Seus montes de cadernos foram entregues ao jornalista e ele, com a sensação do furo e a pecha do ‘novo jornalismo’, selecionou as histórias, editou os textos e criou volumes como 'Quarto de despejo: Diário de uma Favelada', em 1960”, escreveu o professor da Universidade de São Paulo (USP) José Carlos Sebe Bom Meihy, coautor do estudo Cinderela Negra: A Saga de Carolina Maria de Jesus.

Para a escritora Maria Célia Nunes, “Carolina de Jesus rompeu o silêncio imposto aos vilipendiados. Denunciou a fome, a miséria e a permanência da escravidão, por além da abolição”.

A catadora de papel Carolina Maria virava celebridade. E mais: sua literatura chegava ao público em um momento que as letras eram um espaço reservado a homens brancos, letrados e, com raras exceções, ricos e em posição social elevada. Se eu tivesse diploma superior, seria respeitada, mas tenho só dois anos de grupo. Sou semianalfabeta”, desabafou Carolina.

O mesmo sucesso, porém, não foi alcançado pelos seus livros seguintes, Casa de Alvenaria: Diário de uma Ex-favelada (1961), Pedaços da Fome (1963) e Provérbios (1963). Neste mesmo ano, comprou um pedaço de terra em Parelheiros, bairro periférico da zona sul de São Paulo, e iniciou a construção de uma casa. Plantava ali sua horta e criava galinhas, mas ainda passando por inúmeras dificuldades, ainda que nunca tenha deixado de escrever. Em 1975, entregou os manuscritos sobre sua infância e adolescência para duas jornalistas francesas que culminaram no livro Journal de Bitita ou Diário de Bitita.

A importância de seus livros, um documento sobre os marginalizados, permanece, e a crítica literária concorda. “Carolina é uma escritora fundamental para entender a literatura brasileira feita, em sua grande maioria, de autores brancos de classe média que dominavam a língua formal. Ela mostra a outra face dessa história, que passa a ser observada do ponto de vista dela, de baixo”, explicou a professora da Universidade de Brasília (UnB) Germana Henriques Pereira, autora de O Estranho Diário de uma Escritora Vira-lata.

Carolina Maria não conseguiu escapar de seu destino. Cinco anos após o sucesso de Quarto de Despejo, ela voltou a catar lixo. “Estou no inferno, não saiu nada do jeito que desejei e eu não gosto de ser teleguiada. Eles é que administram o que arrecado”, escreveu na época.

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add_location Para conhecer mais sobre esta grande mulher, quem passar pela capital paulista até 18 de maio de 2025, poderá conhecer detalhes e curiosidades na exposição Carolinas, na Caixa Cultural São Paulo, localizada pertinho da Catedral da Sé, no coração de São Paulo.

A exposição apresenta não apenas o espólio artístico-literário, mas também fotografias, capas de livros, matérias jornalísticas, trechos de livros, de diários e de alguns trabalhos ainda inéditos da escritora. O objetivo é reforçar ainda mais a pluralidade de suas produções e de sua trajetória.

A ideia, segundo a curadoria do espaço, é que o público possa conhecer as várias Carolinas por detrás da artista, e como essas múltiplas facetas dialogam entre si. Para isso, a mostra estará organizada em quatro núcleos, que abordam memórias da escritora, seu nascimento como artista, maturidade intelectual e o final de sua vida. Todos esses segmentos têm, como eixo comum, o destaque à história de Carolina e a sua fé na vida, em Nossa Senhora, em Deus.

A visitação é gratuita, de terça a domingo, das 8h às 19h.

Escrito por:
Karla Maria (arquivo pessoal)
Karla Maria

Jornalista e escritora, autora de quatro livros que tratam sobre fé e direitos humanos, cada um a seu modo. É mestranda em História na Unesp. Foi finalista do Prêmio Vladimir Herzog 2024, é TEDx Speaker, mãe do pequeno João, antirracista e devota de Nossa Senhora Aparecida. (@karlamariabra)

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Por Redação A12, em Brasil

A fé no diário de Carolina Maria de Jesus

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