Segundo a etimologia, um campo de estudo da linguística que trata da história ou origem das palavras, a palavra falácia é um substantivo feminino que deriva do verbo latino fallere e significa enganar.
Falácia é tudo aquilo que não é verdadeiro e, logicamente, incoerente. Os argumentos falaciosos são de tal modo elaborados que eles, por sua vez, acabam interferindo em nosso emocional e psicológico. O argumento falacioso tem poder de persuasão. Isto é, de nos induzir a acreditar que há no Brasil, por exemplo, uma democracia racial. Ou seja, que não existe racismo no Brasil e que brancos e negros vivem aqui em perfeita harmonia. Entretanto, o cotidiano das mulheres e homens negros nos mostra que são duas afirmações falaciosas, ou seja, mentirosas.
Seja em que tempo for, no Brasil, de forma particular, o tema da raça sempre "esquentará o couro do tamborim". As questões raciais, para muitos brasileiros, brancos e negros, ainda são questões indigestas e irrelevantes.
O fato é que, não podemos negar, ou mesmo subestimar, que em plena era líquido-moderna e sob o jargão da “democracia racial”, nos dizeres de Lilia Moritz Schwarcz - professora titular no Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP) -, “os negros continuam à margem das maiores benesses (...), tendo acesso diferenciado ao trabalho, ao lazer, à educação e à infraestrutura mais básica” (SCHWARCZ, 2007, p. 12).
À sombra do mito da democracia racial, afirmou-se dos telhados, e ainda se afirma, segundo Gilberto Freyre, que “todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo, a sombra, ou pelo menos a pinta do indígena e ou do negro” (SCHWARCZ, 2007, p. 13).
A afirmação referida acima, seria imprudente negar, é totalmente idílica. Ela não impediu, e continua não impedindo, a existência de preconceito de cor no Brasil. As relações raciais no Brasil não são harmônicas e, menos ainda, democráticas. Ao contrário do que se pensa, elas são relações conflituosas.
Infelizmente, ainda nos dias atuais, a realidade racial brasileira encontra-se encoberta pelo mito da democracia racial que nos faz acreditar que no Brasil não existe racismo. As falácias do mito da democracia racial propagam a discriminação e o preconceito, cada vez mais acirrados, entre brancos e negros brasileiros.
A passagem da Modernidade Sólida para a “Modernidade Líquida” (BAUMAN, 2001, p. 76), essa mais competitiva do que a primeira, não incluiu os negros. No Brasil, os negros, como o cego Bartimeu (cf. Mc 10,46), continuam sentados à beira do caminho, mendigando atenção, justiça, direitos, subempregos, igualdade social e racial.
Na atualidade fluida, a maioria dos negros brasileiros é irrelevante e se encontra sob as asas da opção zero. No Brasil, líquido-moderno, o indivíduo negro encontra-se, seria imprudente de nossa parte negar, desprovido de toda e qualquer liberdade de escolha. O indivíduo negro, particularmente o que se encontra nas camadas mais baixas da sociedade brasileira, não tem a oportunidade de fazer opções. Sob o peso da subordinação, opressão e escravização, de ontem e de hoje, os negros brasileiros veem à sua frente, tão somente, a multiplicação dos “cenários distópicos” (BAUMAN, 2001, p. 11).
Lamentavelmente, a realidade racial brasileira permanece velada. No Brasil, o racismo não é visto como problema. Se não há, no Brasil, um conflito racial explicito, há sim, no Brasil, sérios problemas raciais. Pela janela da desigualdade e da discriminação o que vemos? Vemos mulheres e homens negros sendo explorados, injustiçados e discriminados por causa da cor da pele, por causa do nariz achatado, por causa do cabelo crespo ou por causa dos pés espalmados.
A ideia de ausência de conflito racial no Brasil é mito. O Brasil não é um paraíso racial. Infelizmente, a cultura do “mulatismo” nos faz acreditar que os conflitos raciais no Brasil são acontecimentos isolados, sem muita relevância. A esse respeito diz a professora Lilia Moritz Schwarcz que a “ausência de tensões abertas e de conflitos permanentes, em si mesma, não significa que há uma boa relação social” (SCHWARCZ, 2007, p. 18), entre negros e brancos. Novamente esbarramos com o mito da democracia racial.
A tolerância racial brasileira é quase zero. O racismo brasileiro é velado. Chamar de "macaco" um indivíduo negro, em terras brasileiras, chega a ser cômico. Tal prática é comum. Uma simples "brincadeira". Os brasileiros, de forma geral, não se reconhecem como indivíduos racistas, embora o pratiquem o tempo todo. O racismo brasileiro, além de ser velado, é um tipo de racismo particular. Ou seja, no Brasil é preconceito não ter preconceito.
Assim sendo, nessa linha de pensamento, o preconceito no Brasil é visto como algo inevitável, chega a ser biológico, cultural. Podemos ainda dizer que, no Brasil, o preconceito é uma conditio sine qua non. O sociólogo Florestan Fernandes, em sua obra "O negro no mundo dos brancos", diz que “a tendência do brasileiro é continuar discriminando, apesar de considerar tal atitude ultrajante, para quem sofre, e degradante, para quem a pratica” (SCHWARCZ, 2007, p. 18).
O preconceito de cor no Brasil é condenado. No entanto, ele continua sendo aplicado naturalmente. Isso porque, o preconceito de cor não é visto, pelo menos por uma boa parte da sociedade brasileira, como um ato imoral e um mal em si mesmo. Enquanto isso, a discriminação racial no Brasil continua intocada. Graças ao mito da democracia racial a discriminação racial brasileira, chega a ser quase totalmente imperceptível. O racismo no Brasil é “dissimulado e pouco sistemático” (SCHWARCZ, 2007, p. 18). Dessa forma, inevitavelmente, ele acaba colaborando com a proliferação de uma mentalidade voltada para o branqueamento.
O indivíduo brasileiro, seja ele chamado de “preto” ou “negro”, está predestinado a fazer parte da classe subalterna de nossa sociedade. Os negros, por mais que eles se esforcem, jamais conseguirão usufruir plenamente de sua cidadania. Tendo a “escravidão como herança intocada” (SCHWARCZ, 2007, p. 19), a questão negra no Brasil continua sendo, lamentavelmente, tratada com certo grau de descaso, desinteresse e com um forte grau de falseamento.
A quem interessa, na atualidade líquido-moderna, o desenraizamento da população afrodescendente, que ainda carrega sobre seus ombros as pesadas marcas históricas? A supremacia da raça branca impede que as mulheres e os homens negros assumam, aqui e agora, seus lugares como protagonistas da própria história.
Lembra-nos Fernandes que, “a ideia de que o negro não tem problemas, a ideia de que por conta da índole do povo brasileiro não existem distinções raciais; a ideia de que houve igualdade no acesso à riqueza, ao poder e ao prestígio; a ideia de que o preto está satisfeito, a ideia de que não existiu nem existe problema de justiça social com referência ao negro” (Schwarcz, 2007, p. 20), são verdadeiras mentiras que continuam sendo ditas como verdades absolutas.
A população afrodescendente do Brasil precisa dar um basta ao mito da democracia racial e assumir de forma ativa seu papel na construção de seus próprios destinos. Mulheres e homens negros, vamos dizer um forte não ao “branqueamento psicossocial e moral” (Schwarcz, 2007, p. 20). Como arautos, vamos combater as teses repressoras que atentaram, e ainda atentam, contra nossa identidade negra.
Quem são as mulheres e os homens negros? Somos seres humanos vivos e dinâmicos cooperando com o desenvolvimento do Brasil. Denunciemos com coragem as desigualdades e o regime de diferenças praticados livremente no Brasil. Por que o mito da democracia ainda continua, em plena era líquido-moderna, operante? Precisamos nos libertar dele para juntos enfrentarmos o racismo brutal que vigora entre nós, negros e negras brasileiros.
O Brasil é um país ambivalente e ambíguo quando o assunto é o negro. Aqui, infelizmente, o preconceito racial é mais do que um legado. O preconceito “se refaz no presente e mostra como a ideia de democracia racial vem ganhando novos contornos” (Schwarcz, 2007, p. 22).
Lamentavelmente, em terras brasileiras, o tema racial tem aparecido como uma questão menor ou irrelevante. As diferenças que separam os brancos dos negros são cada vez mais fortes. Em virtude dos fatos acima mencionados, é imprescindível que todos os negros e negras se conscientizem de sua importância e de seu papel na sociedade brasileira, e encontrem respostas criativas para as questões raciais vigentes, e deixem de ser objetos e passem a assumir sua condição de sujeitos.
Enquanto negros e negras, precisamos agir e reagir. Precisamos reagir e dizer não aos novos modelos de escravidão e alienação que nos impedem de ser protagonistas de nossa própria história. A escravidão brasileira é vista como dócil e benigna, mas isso é uma grande falácia. A escravidão brasileira, por ser velada, é ainda mais cruel, porque ela nos aprisiona, nos escraviza de dentro para fora. As questões raciais no Brasil não são levadas a sério. No entanto, o racismo é real e precisamos dizer não a ele já.
Salve, Zumbi dos Palmares!
Bibliografia
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida / Zygmunt Bauman; tradução, Plínio Dentzien. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Raça sempre deu o que falar / Lilia Moritz Schwarcz. Apud FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos / Florestan Fernandes; apresentação de Lilia Moritz Schwarcz. – 2ª ed. revista – São Paulo: Global, 2007.
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