No período anterior aos anos 2000, o mundo nos parecia menor; enxergávamos um pouco além de nossas fronteiras, e, por isso, não conseguíamos nos informar sobre tudo o que ocorria pelos continentes, ao menos simultaneamente. A partir dos anos 2000, a situação mudou radicalmente com a popularização da internet. Conforme ela foi se inovando com o surgimento de plataformas virtuais, como as famosas redes sociais, internautas deixaram de ser meros receptores para se tornarem produtores de conteúdo, além de “viajarem” por todo o planeta, utilizando como “meio de transporte” apenas uma rede de conexão.
Assim, com tal inovação, o mundo, que nos parecia menor, tornou-se maior, correto? Depende! Se pensarmos no sentido literal, esse aumento realmente aconteceu, mas não podemos negar que a explosão informacional virtual, ao invés de possibilitar mais opções de pesquisas para alguns, acarretou em um direcionamento de opiniões; ou seja, diante de tanta informação, certos internautas passaram a acessar apenas aquilo em que acreditam e, simplesmente, a ignorar outras realidades. Eles deixaram, portanto, de enxergar o planeta em sua totalidade. Tal recusa torna-se arma de influência poderosa daqueles que desejam impor suas ideias, as quais, muitas vezes, estão embasadas em exclusão social, ganância, individualismo, preconceito, violência, entre outras questões.
Leia Mais8 pontos para entender a "Fratelli Tutti", nova encíclica do Papa FranciscoEsse paradoxo de relações é abordado com maestria na Carta Encíclica Fratelli Tutti do Papa Francisco, sobre a fraternidade e a amizade social. No documento, o pontífice ressalta, entre vários outros aspectos, a deturpação do conceito de “abrir-se ao mundo”, que, segundo ele, está cada vez mais voltado para “uma abertura aos interesses estrangeiros ou à liberdade dos poderes econômicos para investir sem entraves nem complicações em todos os países” (12).
No entanto, tal conceito deveria voltar-se ao bem comum, a uma união pautada na valorização e na inclusão das diferenças, ao invés da anulação destas em prol de um modelo único que busca ocultar as identidades de povos e nações, na chamada “globalização da indiferença”, ressaltada pelo Papa Francisco. “Encontramo-nos mais sozinhos do que nunca neste mundo massificado, que privilegia os interesses individuais e debilita a dimensão comunitária de existência” (12).
Logo, um meio tecnológico que permite o desenvolvimento do senso crítico pela infinidade de opções apresentadas é utilizado, muitas vezes, para exercer uma função oposta a essa, por meio da manipulação de ideias. Como nos diz o pontífice: “uma maneira eficaz de dissolver a consciência histórica, o pensamento crítico, o empenho pela justiça e os percursos de integração é esvaziar-se de sentido ou manipular as grandes palavras. Que significado têm hoje palavras como democracia, liberdade, justiça, unidade? Foram manipuladas e desfiguradas para utilizá-las como instrumento de domínio, como títulos vazios de conteúdo que podem servir para justificar qualquer ação” (14).
Ações que envolvem a divisão e a polarização da sociedade, afinal, um povo dividido é um povo frágil. Caminhamos rumo a uma individualização doentia e perigosa, em que o diálogo morre, gradativamente, e que pensar diferente é considerado um crime, potencializado pelo poder de repercussão da internet. Por meio dela, atacam-se aqueles que pensam criticamente e que são considerados ameaça aos poderosos, destruindo-lhes a reputação das mais variadas formas possíveis, pois, com a falta de controle digital é fácil fazê-lo. Papa Francisco nos diz que “aquilo que ainda há pouco tempo uma pessoa não podia dizer sem correr o risco de perder o respeito de todos, hoje pode ser pronunciado com toda a grosseria, até por algumas autoridades políticas, e ficar impune” (45).
Além disso, “uma maneira fácil de dominar alguém é destruir-lhe a autoestima” (52). E o pontífice nos aponta que não existe alienação pior do que sentir-se sem raízes, sem história, sem origem. Buscam-se apagar as diferenças e descartar aqueles que já não são mais úteis socialmente, ressaltando a redução do ser humano a um mero objeto. É a chamada “cultura do descarte”, apontada pelo pontífice: “partes da humanidade parecem sacrificáveis em benefício duma seleção que favorece a um setor humano digno de viver sem limites” (18).
Leia MaisFratelli Tutti: O apelo do Santo de AssisTudo porque deixamos de enxergar o outro em sua essência, isolados em nossas bolhas digitais e numa falsa crença de que somos os únicos detentores do saber. Nós nos esquecemos de que “a verdadeira sabedoria pressupõe o encontro com a realidade” (47). Trata-se, no entanto, de uma realidade que preze a totalidade e não apenas a minha versão de realidade ou o meu mundo, que se torna barreira de autodefesa de tal modo que “deixa de haver o mundo, para existir apenas o meu mundo” (27).
Que possamos, então, derrubar as fronteiras dos nossos meios para conhecermos as outras realidades por meio de um diálogo verdadeiro que nos permita desenvolver a escuta, a empatia, o acolhimento, enfim, que possamos sair de nós para enxergar o outro e aceitá-lo como ele é. Não significa concordar com todas as suas atitudes e opiniões, mas reconhecê-lo como ser humano dotado de direitos e deveres. Só assim poderemos caminhar rumo “à cultura do encontro que supere as dialéticas que colocam um contra o outro” (215). Só assim, cresceremos enquanto humanidade.
Não adianta sonharmos e planejarmos grandes ações se elas não incluírem o próximo e, por isso, encerro com a mensagem do Papa Francisco: “Como é importante sonhar juntos! (...) Sozinho, corres o risco de ter miragens, vendo aquilo que não existe, é juntos que se constroem os sonhos”. Que construamos, então, sonhos e não miragens.
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