Santo Agostinho é muito conhecido pelos cristãos que têm mais acesso à história da Igreja e à Teologia. Sobretudo, o filho de Santa Mônica é famoso pela vida que viveu antes de se converter e pelo caminho de conversão que seguiu. Inclusive, ele mesmo contou sua experiência num livro que ficou célebre, intitulado "Confissões".
Para conhecer um pouco mais de Santo Agostinho e o que ele significou para a Igreja, ouvimos o teólogo e professor Lino Rampazzo. Vale a pena conhecer Santo Agostinho.
:: Santo Agostinho, em busca da verdade
Padre César Moreira: Quem foi Santo Agostinho? Por que é tão respeitado na história da Igreja?
Professor Lino: Antes de responder a esta pergunta, é preciso lembrar que, nos primeiros séculos do Cristianismo, houve a contribuição significativa de grandes escritores, muitos deles também bispos e santos, chamados de “Padres da Igreja”, os quais colocaram as bases da doutrina cristã. Basta pensar, por exemplo, na formulação da doutrina sobre a Trindade, a divindade e humanidade de Cristo, os sacramentos da Igreja, sempre a partir da reflexão sobre a Bíblia.
Os mais importantes destes “Padres” são aqueles que escreveram nas duas línguas do antigo Império Romano, o grego (os "Padres Gregos") e o latim (os "Padres Latinos"). Destacam-se os seguintes Padres Gregos: Santo Atanásio, São Basílio, São Gregório de Nissa, São Gregório de Nazianzo e São João Crisóstomo; e os seguintes Padres Latinos: Santo Hilário, Santo Ambrósio, São Jerônimo, Santo Agostinho e São Leão Magno.
Pois bem, Santo Agostinho, que viveu entre 354 e 430 e escreveu em latim, é considerado como o maior dos padres da Igreja, homem de paixão e de fé, de grande inteligência e incansável solicitude pastoral. Este grande santo e doutor da Igreja é muito conhecido, pelo menos de fama, também por quem ignora o cristianismo ou não tem familiaridade com ele, porque deixou uma marca muito profunda na vida cultural do Ocidente e de todo o mundo.
Pode-se dizer que todo o pensamento da antiguidade conflui na sua obra e dela derivam correntes de pensamento que permeiam toda a tradição doutrinal dos séculos sucessivos. Agostinho é o Padre da Igreja que deixou o maior número de obras. Seu biógrafo Possídio diz: parecia impossível que um homem pudesse escrever tantas coisas durante a vida. De 395 até sua morte, em 430, foi bispo de Hipona, no norte da África, que na época pertencia ao Império Romano.
Padre César Moreira: De fato, ele levou uma vida contrária aos mandamentos de Deus? Por que fez tal escolha?
Professor Lino: Para entender os comportamentos de uma pessoa, é preciso situá-la no ambiente em que vive. Vamos, portanto, considerar onde Agostinho nasceu e cresceu. Ele nasceu em Tagaste (Souk-Ahras) pequena cidade da Numídia, na Argélia de hoje, na fronteira com a Tunísia. Diríamos hoje que ele pertencia a uma família de classe média, que não podia pagar seus estudos. Encontrou um “padrinho” de nome Romaniano, que, percebendo sua inteligência, deu-lhe os subsídios necessários para estudar retórica em Cartago.
:: A mentira por Santo Agostinho
O pai de Agostinho, de nome Patrício, não era cristão e permaneceu pagão até a véspera de sua morte. A mãe, Mônica, foi uma cristã fervorosa. O jovem Agostinho era de um espírito vivo, natureza emotiva, sensibilidade excessiva, aluno indisciplinado, demasiado seguro de suas qualidades. Ele decidiu juntar-se às “ovelhas negras”, alguns jovens desordeiros, quando seguiu para estudar em Cartago.
A esse respeito, ele escreveu: "Vim para Cartago e logo fui cercado pelo ruidoso fervilhar dos amores ilícitos" (Confissões III, 1). Depois conviveu, até sua conversão, com uma moça que lhe deu um filho, de nome Adeodato, nascido em 372. A religião de sua mãe parecia-lhe um “conto de Carochinha”, ou, para dar um exemplo dos dias atuais, uma historinha tipo “Chapeuzinho Vermelho e Lobo Mau”. Aliás, ele começou a ler a Bíblia utilizando traduções mal feitas e ficou desanimado. São Jerônimo ( 347-420), seu contemporâneo, na época estava realizando uma tradução da Bíblia muito mais valiosa.
Em 374, começou a seguir a seita dos Maniqueus, cuja moral não era muito exigente, pois sustentavam o seguinte: "Não somos nós que pecamos, mas alguma outra natureza estabelecida em nós" (Confissões V, 10). Daí justificavam-se, sem assumir as próprias culpas. Apesar dos prantos da sua mãe, até os 28 anos Agostinho aderiu a esta seita. Mas sua procura pela verdade o deixou, aos poucos, insatisfeito com as teorias dos Maniqueus.
Padre César Moreira: Qual o motivo de sua conversão? Como aconteceu? Quem teve influência na reviravolta que deu na sua fé e no seu modo de viver?
Professor Lino: Por incrível que pareça, a conversão de Santo Agostinho começa quando, aos 19 anos de idade, ele lê a obra Hortêncio, um escrito de Cícero, que depois se perdeu. De fato, o texto de Cícero despertou nele o amor pela sabedoria, como escrevera, já bispo, nas confissões: "Aquele livro mudou verdadeiramente o meu modo de sentir", de modo que, "de repente, perdeu valor qualquer esperança vã e desejava, com um incrível fervor do coração, a imortalidade da sabedoria" (III, 4, 7).
No fundo, Agostinho iria procurar aquela sabedoria que dá sentido à vida, e que ele encontraria somente na fé cristã. Mas antes que isso acontecesse se passaram alguns anos. Assim, professor de gramática aos 20 anos na sua cidade natal, regressou a Cartago, onde foi um brilhante e celebrado mestre de retórica. Transferiu-se em seguida para Roma e depois para Milão, onde na época residia a corte imperial e onde obtivera um lugar de prestígio como professor, graças ao interesse e às recomendações de Símaco, prefeito de Roma.
Em Milão, Agostinho adquiriu o costume de ouvir, inicialmente para enriquecer a sua capacidade de orador, as lindíssimas pregações do Bispo Ambrósio. No começo sentiu-se fascinado pela palavra deste culto bispo, mas aos poucos a mensagem dele atingiu cada vez mais o seu coração. Começou a apreciar a Bíblia e entender que todo o Antigo Testamento é um caminho rumo a Jesus Cristo. Percebeu assim toda a unidade do mistério de Cristo na história e também a síntese entre a razão e a fé que se realiza em Cristo, Verbo eterno que se fez carne. Começou a ler a Bíblia e, sobretudo, as Cartas de São Paulo. A esse respeito ele narra que, no tormento das suas reflexões, tendo-se retirado num jardim, ouviu uma voz infantil repetindo uma cantilena (antiga canção em latim) que nunca tinha ouvido antes: Tolle, lege, tolle, lege: "Toma e lê, toma e lê" (Confissões VIII, 12).
Recordou-se, então, da conversão de Santo Antão, pai do monaquismo, e abriu o texto das cartas de São Paulo. Seu olhar caiu na passagem da epístola aos Romanos, onde o Apóstolo exorta a abandonar as obras da carne e a revestir-se de Cristo (13, 13-14). Tinha compreendido que aquela palavra se dirigia pessoalmente a ele naquele momento; vinha de Deus através do Apóstolo e indicava-lhe o que fazer. Sentiu, assim, dissiparem-se as trevas da dúvida e encontrou-se, enfim, livre para doar-se totalmente a Cristo: "Tinhas convertido a ti o meu ser", comenta (Confissões, VIII, 12).
Foi esta a primeira e decisiva conversão. Assim, aos trinta e dois anos, Agostinho foi batizado por Ambrósio, a 24 de Abril de 387, durante a vigília pascal na Catedral de Milão. Juntamente com ele, foi batizado o filho Adeodato, que iria morrer poucos anos depois. A mãe, Mônica, tinha acompanhado o filho até Milão. Ela rezou muito para que ele se convertesse. Podemos então dizer que a conversão de Agostinho foi obra da Graça de Deus, que atendeu às orações da mãe e, através da pregação de Ambrósio, iluminou sua mente. Depois do batismo, Agostinho decidiu regressar à África com alguns amigos, com a ideia de praticar uma vida comum, de tipo monástico, ao serviço de Deus, na cidade de Hipona. Nesta cidade da beira-mar africana, apesar das suas resistências, foi ordenado presbítero em 391 e em 395, quatro anos mais tarde, foi sagrado Bispo.
Padre César Moreira: Santo Agostinho tem influência no modo de a Igreja fazer filosofia e teologia? Em que precisamente?
Professor Lino: Há uma expressão muito interessante de Santo Agostinho, que influenciou muito a filosofia e a teologia: crede ut intelligas ("creia para compreender") e intellige ut credas ("compreenda para crer". Sermão 43, 9). Trata-se do diálogo entre a fé e a razão. Aliás, na primeira obra que escreve após sua conversão, ele afirma que a fé e a razão são "as duas forças que nos levam a conhecer" (Contra os Acadêmicos III, 20, 43).
Gostaria, a esse respeito, de dar um exemplo sobre como Santo Agostinho analisa o mistério da Santíssima Trindade, na sua obra "A Trindade", utilizando-se, ao mesmo tempo, da fé e da razão.
Partindo da afirmação da Sagrada Escritura, segundo a qual o homem foi criado "à imagem e semelhança de Deus" (Gênesis 1,27), Santo Agostinho encontra esta imagem não no “homem exterior”, nem na comunidade familiar, mas na natureza espiritual, mais expressamente no fato que a alma do homem possui "memória, inteligência e amor". A partir desta analogia ou semelhança, ele encontra no interior do homem o reflexo da Trindade: da pessoa do Pai, na memória, da pessoa do Filho, na inteligencia e da pessoa do espírito, no amor. Aliás, logo depois, ele aplica o termo pessoa ao homem, afirmando que "cada homem é pessoa" (A Trindade, XV, 7). Atenção! Algumas décadas antes, os Padre Capadócios, assim chamados porque moravam na região da Capadócia, hoje situada na Turquia (São Gregório Nisseno, São Basílio e São Gregório Nazianzeno), tinham criado o termo "pessoa" para falar da "pessoa" do Pai, da "pessoa" do Filho e da "pessoa" do Espírito Santo. Mas nenhum estudioso antes de Santo Agostinho tinha chamado ao homem com o termo "pessoa".
Hoje, em que se fala muito de "dignidade da pessoa humana", inclusive no 1º artigo da Constituição da República do Brasil de 1988, seria bom lembrar que devemos muito a Santo Agostinho por esta valorização. Limito-me, apenas, a indicar outros temas teológicos e filosóficos, analisados por Santo Agostinho.
Não é novidade para a história humana viver numa época de "ceticismo", na qual parece não existir nenhuma certeza. Bento XVI chamava isso de "ditadura do relativismo". Mas este problema existia também na época de Santo Agostinho, e ele fazia o seguinte raciocínio em sua obra 'A Cidade de Deus': 'Se alguém afirma que não temos certeza nenhuma, pelo fato de errarmos muitas vezes, pelo menos temos certeza da nossa existência, pois "si fallor, sum", quer dizer, "se eu erro, logo existo": de fato, tenho plena certeza da minha existência'. (A Cidade de Deus, XI, 26).
Outro tema: a diferença entre a eternidade e o tempo. Agostinho afirma que a eternidade é um nunc stans (um agora permanente) e o tempo é um nunc transiens (um agora que passa). Quem fica pensando que na eternidade vai cansar de ver a Deus, confunde o tempo com a eternidade. Esta, pois, vai ser comparada com a nossa experiência do “instante” (Confissões XI, 11).
Mais um exemplo: Para quem afirma que o sacramento administrado por um ministro indigno é inválido, Santo Agostinho afirma: “Quer Pedro batize, quer Judas batize; é Cristo quem batiza” (Comentário ao Evangelho de João 5,7).
Outros temas analisados por Santo Agostinho: o mal, a liberdade, o pecado original, a necessidade da graça
Sintetizando o pensamento de Agostinho sobre isso, podemos afirmar que o mal não vem de Deus, mas do mau uso da nossa liberdade; nós nascemos com o pecado original e, para conseguirmos a salvação, precisamos da graça de Deus. Como já disse, estou apenas indicando estes temas que enriqueceram, graças a Santo Agostinho, a filosofia, a teologia e a doutrina da Igreja.
Padre César Moreira: Quais os dizeres e textos de Santo Agostinho mais conhecidos e citados?
Professor Lino: Gostaria de apresentar uma bela frase de Santo Agostinho sobre Nossa Senhora. Todos nós conhecemos o belíssimo trecho de São Lucas, onde Jesus responde a uma mulher que exaltava a sua mãe, dizendo: "Feliz o ventre que te trouxe e os seios que te amamentaram!". E Jesus respondeu: "Felizes, antes, os que ouvem a palavra de Deus e a observam" (Lucas 11, 27-28).
Santo Agostinho comenta este Evangelho assim: "Mãe e discípula ao mesmo tempo", e acrescentava, com ousadia, que ser discípula para Ela foi mais importante do que ser Mãe, nestes termos: "Santa Maria fez a vontade do Pai e a fez totalmente; por isso foi mais importante para Maria ter sido discípula do que mãe de Cristo" (Sermão 72 A,7). Outras frases célebres:
Ama e faz o que quiser (Comentário a João 7,8).
Dois amores fizeram as duas cidades: o amor de si até o desprezo de Deus; o amor de Deus até o desprezo de si (A Cidade de Deus 14, 28).
Fizeste-nos para Ti, ó Senhor, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em ti (Confissões 1,1).
Que deseja o homem mais fortemente do que a verdade? (Comentário a João, 26,5).
A fé que não seja pensada não é fé (A predestinação dos santos, 2,5)
Deus é a causa do subsistir, a razão do pensar, a norma de viver (A Cidade de Deus 8,4).
Tornamo-nos Cristo. De fato, se ele é cabeça, nós os seus membros, o homem total é ele e nós (Comentário a João, 21,8).
Termino com esta última citação. Trata-se do conselho que Agostinho deu a um catequista: "Quando tu catequizas, fala de tal maneira que aquele que te ouve creia; crendo, espere; esperando, ame" (Primeira catequese aos não cristãos IV, 8).
Padre César Moreira: Ainda hoje acontecem conversões como a de Santo Agostinho?
Professo Lino: Quero fazer uma comparação com a festa de todos os santos. Nesta circunstância, os padres nos seus sermões lembram justamente que não há apenas os "santos famosos" já canonizados pela Igreja, como São Francisco de Assis, Santa Clara, Santo Inácio, Santo Afonso, ou mais recentemente, São João XXIII, São João Paulo II, a Beata Teresa de Calcutá ou a Beata Irmã Dulce. Há muitos cristãos simples nas nossas famílias que viveram a fé de maneira coerente, também nas circunstâncias difíceis. Da mesma forma, há convertidos mais famosos e convertidos menos conhecidos. Penso, a título de exemplo, em não poucas pessoas que passaram pela experiência triste das drogas e se converteram.
Hoje, não poucos destes dão seu testemunho em vários centros de recuperação, ajudando quem é dependente a libertar-sr das drogas. Tenho dois amigos ex-drogados, que hoje são padres... E ótimos padres! Ambos foram meus alunos. Não foi isso uma conversão? Mas penso também na conversão como algo que nunca termina. Alguns cristãos, já bons, a um certo ponto da vida conseguem tomar uma decisão ainda mais significativa de fé em Jesus.
Gostaria de lembrar, neste momento, o exemplo de um italiano que trabalhou no Brasil. Trata-se de Marcello Candia (1916-1983). Na Itália, sempre participava de iniciativas de caridade. Mas, a certo ponto, decidiu vender sua fábrica e transferir-se ao estado do Amapá, onde mandou construir um hospital. Em seguida abriu outros centros de acolhida, inclusive para hansenianos. No ano de 1975, a revista Manchete publicou um artigo sobre ele, com este título: "O homem mais bondoso do Brasil". A Igreja já abriu seu processo de canonização.
Sim, o mesmo Espírito de Deus que transformou a vida de Agostinho, continua agindo nos corações bem dispostos a acolhê-Lo: e, assim, as conversões continuam.
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