O que você faria se recebesse a notícia de que um cometa está vindo em direção ao planeta Terra e, dentro de poucos meses, causaria sua total destruição?
Opção A: entraria em desespero ou, no mínimo, se preocuparia a respeito?
Opção B: negaria tal informação e seguiria a vida normalmente?
Esse é o contexto de uma produção lançada recentemente em algumas salas de cinema e também na plataforma Netflix que gerou (e vem gerando) bastante repercussão, principalmente nas redes sociais. Trata-se do longa Não olhe para cima, com direção de Adam McKay, que aborda a saga de dois astrônomos para tentar salvar a Terra, após descobrirem que um cometa se colidirá com o planeta em seis meses, e o destruirá totalmente se não for impedido. No entanto, a tarefa não é fácil, já que muitos duvidam da descoberta, mesmo com provas científicas, incluindo a própria presidente dos EUA, que satiriza a situação.
Apesar de algumas críticas sobre a simplicidade do roteiro, o filme ganhou milhares de elogios por fazer uma analogia a um problema recorrente na sociedade, principalmente neste momento de pandemia da COVID-19: o negacionismo. Mesmo com a enxurrada informacional, presente especialmente na internet, sobre a gravidade do novo coronavírus e a eficácia das vacinas contra a COVID-19, comprovada pela medicina e pela ciência, inúmeras fake news imperaram nos espaços virtuais, atenuando a gravidade da doença e questionando a segurança da vacinação.
Essas inverdades, fomentadas pelo botão “compartilhar” das redes sociais, ganharam destaque e, assim, minimizaram dados e comprovações científicas sobre a real situação pandêmica. Enclausurados em suas bolhas virtuais, os chamados negacionistas (negam a realidade dos fatos), tornaram-se consumidores vorazes das desinformações propagadas, a ponto de desacreditarem em toda e qualquer informação diferente das mentiras já recebidas à exaustão.
É, justamente, tal situação que acontece no longa citado. Mesmo com provas científicas, os astrônomos são desacreditados por muitas pessoas que ironizam a possível destruição da Terra por um cometa. A questão se torna ainda mais agravante quando a própria presidente dos EUA demonstra total despreocupação com o problema, influenciando seus apoiadores a fazer o mesmo. Situação semelhante a que vivemos em nossa realidade mundial, com líderes governamentais despreocupados com a pandemia, propagando fake news e, influenciando, assim, milhões de seguidores.
Leia MaisO que a Igreja diz acerca da chamada guerra cultural?Além do excesso de inverdades publicadas com o objetivo de manipular indivíduos, outra tática utilizada pelos propagadores de fake news é mudar o foco dos assuntos mais relevantes.
Em 'Não olhe para cima', um dos astrônomos é chamado a dar uma entrevista em um programa televisivo para falar de sua descoberta do cometa. Mas o tempo mínimo destinado a ele no programa é insuficiente para abordar a complexidade da questão, afinal, a maior parte do tempo é dedicada a assuntos supérfluos como a vida íntima dos famosos e assuntos afins, os quais, por sua vez, atraem muito mais atenção e audiência.
Algo que podemos perceber em nossa sociedade, com o bombardeamento imagético e textual de informações sobre relacionamentos, traições e outras questões envolvendo celebridades, por exemplo, que acabam atraindo mais internautas do que notícias sobre a pandemia, cenário econômico e político do país, entre outras questões. À medida que tais assuntos se tornam a pauta do momento e ganham mais espaço midiático, graças também ao número de likes e compartilhamentos, outras informações são veiculadas com menor frequência e parecem deixar de existir.
“É exatamente por isso que os elementos registrados numa fotografia, por exemplo, são considerados uma reprodução fiel da realidade e os elementos não fotografados, simplesmente, deixam de existir. Ou seja, aquilo que é publicado e compartilhado à exaustão ganha tamanha importância que a realidade não registrada se torna invisível. Eis a tática de desfocar o relevante para focar no irrelevante”, afirma o pesquisador em imagens formado pela USP, Prof. Dr. Jack Brandão.
Leia MaisAmbiente digital não é uma rede de fios, mas de pessoasNetflix lança série com Papa FranciscoA humanidade já viveu algo semelhante antes mesmo do surgimento da linguagem escrita, com os chamados bardos, que tinham o poder de transmitir questões importantes para a história de um povo. Logo, aquilo que eles não diziam era considerado inexistente.
“Daquele que não era declamado e cantado, esquecia-se. Feitos ignorados pelos poetas, considerados indignos em suas odes épicas, perderam-se no tempo e deixaram de existir”, afirma Flavio Ferrari, Head of Ad Innovation da CNN Brasil no artigo 'Bardos, poetas e jornalistas!', publicado na Revista de Jornalismo da ESPM. Ele completa que, na Grécia antiga, o conceito verdade (aletheia) significava o que não se manifestava. Seu antônimo seria a ausência.
Mas, diferentemente de tal época, hoje possuímos muito mais recursos informacionais, para ver além do que nos é mostrado. No entanto, é preciso fazer bom uso deles e, ao contrário do que a personagem presidente dos EUA, alerta no filme, para que as pessoas não olhem para cima, a fim de não verem o cometa, é necessário olhar para todos os lados.
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