Joseph Ratzinger é um brilhante teólogo. Mas, na sua trajetória de Papa Bento XVI, sofreu o impacto de diversos acometimentos – missão, saúde, idade avançada – que naturalmente acabaram minando o vigor indispensável para conduzir assuntos contemporâneos e polêmicos da nossa fé, os quais não podem deixar de figurar na agenda de um pontífice. Uma situação que dele exigiu humildade e coragem para tomar a difícil decisão de abdicar da sua função pontifical.
Para alguns, sua renúncia foi como abandonar a cruz, a exemplo da ‘Última Tentação de Cristo’, constante no livro de Nikos Kazantzakis. Para outros, representou um ato corajoso e compreensível, que surpreendeu o mundo. Como já havia renunciado a tantas outras coisas, tais como casamento, filhos, tempo, posses, baladas, etc., ele renuncia de modo tranquilo. Sua mais expressiva renúncia implica, sem dúvida, a escolha para morrer na simplicidade, sem honras ou homenagens dedicadas a um pontífice.
Estipulando suas contribuições à Igreja, reportamo-nos às fases marcantes de sua vida eclesial, a saber: teólogo-professor, teólogo-cardeal e teólogo-papa.
Teólogo-Professor
Um ano após a ordenação presbiteral, em 1952, iniciou sua atividade docente na Escola Superior de Filosofia e Teologia de Freising, na Alemanha. Lecionou teologia dogmática e fundamental. Em 1953, concluiu doutorado em teologia, quando defendeu a tese: ‘Povo e Casa de Deus na doutrina da Igreja de Santo Agostinho’. Atuando como professor, mostrou-se homem inteligente, porém simples, gentil, amigo dos estudantes; erudito e de fácil acesso. Herança de sua família pobre, uma vez que era filho de pai policial e de mãe cozinheira.
Foi colega do teólogo suíço Hans Küng, mas mantinha certa visão conservadora em oposição às tendências marxistas dos movimentos estudantis dos anos de 1960. Participou do Concílio Vaticano II, na qualidade de especialista em teologia. Juntamente com outros teólogos, fundou em 1972 a revista Communio, refletindo a Igreja e a crise teológica e cultural do pós-Concílio.
Teólogo-Cardeal
Em março de 1977, ao ser nomeado bispo na Alemanha, escolheu como lema de seu episcopado a ‘Verdade’. Elevado a cardeal, poucos meses depois, participou da eleição do Papa João Paulo II. Em 1981, tornou-se prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e um juiz de teólogos. Nessa função, passou a assumir posições duras e atitudes conservadoras, condenando alguns teólogos da libertação, que focalizavam a Igreja num contexto de América Latina. Considerava a Teologia da Libertação correta, quanto ao carisma profético e bíblico de justiça; mas não a aceitava, por acreditar que o marxismo constituía a ferramenta de sua reflexão. Nos anos seguintes, ao menos omitiu atitudes de padres e bispos que agiam de modo nada cristão, em relação à pedofilia, demonstrando um “pulso firme” na defesa da ortodoxia.
Teólogo-Papa
Eleito papa em 2005, deu continuidade à sua linha intelectual, editando encíclicas e livros sobre importantes temas cristãos: amor, esperança, fé, Jesus Cristo. Documentos de tal organização teológica que possibilitam ser ele chamado de “intelectual da fé”.
No livro-entrevista, intitulado ‘Luz do Mundo: O Papa, a Igreja e os Sinais dos Tempos’, baseado em vinte horas de entrevista conduzida pelo jornalista alemão Peter Seewald, revelou-se desencantado pelo que considerou exageros da Igreja em abrir-se de modo indiscriminado ao mundo; não apreciava interpretações demasiadamente positivas de um mundo sem fé. Como alternativa, sugere restaurar o equilíbrio de valores no interior do catolicismo, confirmando sua defesa à ortodoxia, indo contra o pensamento de reforma eclesial do Concílio Vaticano II.
A primeira encíclica, ‘Deus Caritas Est’, publicada em dezembro de 2005, mostra um papa preocupado em esclarecer os conceitos de amor do pensamento ocidental, tão relativizados no mundo atual: o ‘eros’, que é o amor erótico; o ‘ágape’, que é o amor incondicional, e o ‘philia’, que é a amizade.
Quando surgiram os escândalos de pedofilia na Igreja, ele dirigiu uma carta aos bispos da Irlanda, em 2006, onde reconheceu os fatos como “crimes hediondos”. Assumiu que cabia à Igreja solucionar eficazmente esse problema, mostrando a importância em estabelecer a verdade e o respeito, dando os passos necessários para que não voltasse a acontecer o que ocorrera no passado. Propôs que os princípios da justiça fossem assegurados às vítimas.
Dentre tantos países visitados, Bento XVI esteve no Brasil, entre os dias 09 e 13 de maio de 2007. O objetivo principal de sua presença foi a Quinta Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho, realizado no Santuário de Aparecida. Nessa ocasião, canonizou Frei Galvão, o primeiro santo brasileiro, em cerimônia realizada no dia 11 de maio de 2007, em São Paulo.
A segunda encíclica: “Spe Salvi”, publicada em novembro de 2007, fala do entendimento cristão sobre a esperança. Para ele, a vida do cristão deve ser cheia de esperança, sentimento que traz sentido à existência, de vez que Jesus mudou a história porque trouxe à humanidade a esperança de encontro com Deus, e não uma mensagem política qualquer.
Em 2008, recolocou no missal romano a oração pela conversão dos judeus, que era rezada antes do Vaticano II, mas havia sido retirada, por causar polêmica com os judeus.
Ainda em 2008, fez uma viagem aos EUA, onde se posicionou contra os casos de pedofilia, afirmando que os pedófilos seriam excluídos do ministério sagrado, em vista do comportamento incompatível com o sacerdócio. As vítimas têm necessidade de cura, de ajuda, de assistência, de reconciliação, cabendo à Igreja o dever de assumir isso como um grande compromisso pastoral. Sobre esse mesmo tema, em 2010, respondendo a jornalistas, afirmou que “o perdão não substitui a justiça; esta tem de ser real e prática”.
A terceira encíclica, ‘Caritas in Veritate’, ou ‘Amor à verdade’, publicada em Julho de 2009, aborda questões econômicas, esclarecendo que não cabe à Igreja oferecer soluções técnicas para os problemas econômicos, mas que ela pode apontar prioridades e valores. Menciona vários pontos pertinentes à doutrina social da Igreja, tais como a fome, ecologia, problemas relacionados às migrações, bioética e demografia. As “janelas do Vaticano” devem tê-lo ajudado a perceber a crise econômica em que a Europa está mergulhada e que compromete a fé.
Neste mês de fevereiro, Bento XVI sentiu diminuir sua resistência para lutar fisicamente contra a crise e declarou sua renúncia, dando um passo além do Papa João Paulo II. Nesse ato de renunciar ao papado, retoma o perfil do gentil e simples teólogo-professor; reconhece sua limitação humana e toma uma atitude nada conservadora, quebrando uma tradição de quase seis séculos. Ao dar a notícia de que renunciaria ao pontificado, exatamente no Dia do Enfermo, assume os limites humanos necessários para bem exercer o ministério que lhe fora confiado. Um gesto que, certamente, não o deixará esquecido na história. Ele nos abriu as portas para pensar novas possibilidades na Igreja.
Pode ser que Bento XVI tenha descido da cruz, mas não deixou de ser crucificado por alguns. Condenado ou absolvido, ele continua filho de Deus. E sua renúncia mostra a necessidade da Igreja rever seus conceitos e sua posição no mundo, cada vez mais resistente para quem está pensando como ela. Respostas novas diante do relativismo, fundamentalismo, ateísmo e tantos outros pensamentos precisam vir do novo papa a ser eleito. Já não são condizentes as respostas carregadas de dogmatismo, ortodoxia ou de chavões de tempos passados. A ferramenta da Igreja não pode ser a sua própria verdade, mas a verdade do Cristo: a Boa Nova. Novos tempos, novas respostas.
Para o término do seu pontificado, Bento XVI escolheu o dia de São Romão, um dos primeiros monges franceses. Romão achava que as regras do mosteiro eram muito brandas e foi viver nas montanhas desertas entre a França e a Suíça, levando apenas uma bíblia, que considerava indispensável para viver. Alguns anos depois, foi localizado por seu irmão Lupicino, em completa oração e solidão. Coincidência ou não, Bento XVI pretende isolar-se entre os muros do Vaticano e ali empreender uma forte vida de oração pelo mundo, num exemplo de pensador que reza e busca cada vez mais os mistérios de Cristo, a exemplo de São Tomás de Aquino, que no fim da sua vida, no meio de uma missa, teve uma forte revelação e passou a considerar palha tudo o que havia escrito. Reze em paz, Bento XVI. Reze por nós, reze pela verdade… e que a vida lhe seja longa!
Padre Gelson Luiz Mikuszka é Missionário Redentorista,
mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná
e autor do livro “Por uma paróquia missionária à luz de Aparecida”.
Escreveu este artigo especialmente para o Portal A12.
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