"Parto amanhã para o serviço militar, serviços de saúde. Para onde me mandarão".
Assim escreveu o padre Angelo Giuseppe Roncalli, o Papa João XXIII, em seu diário no dia 23 de maio de 1915, ao assumir a missão de capelão do exército italiano durante a Primeira Guerra Mundial. Desse período pouco se sabe da vida de João XXIII. Estava com 34 anos, e nos últimos tempos ocupava a função de secretário do bispo de Bérgamo, dom Giacomo Radini Tedeschi, o seu pai espiritual.
“Minha missão na Grécia é muito difícil, por isso a amo mais ainda. Confiaram-na a mim, portanto, é uma questão de obediência”.
Resume o monsenhor Roncalli sobre a sua missão na Turquia e na Grécia. Permaneceu neste país de 1935 até 1944, quando a Segunda Guerra Mundial estava para terminar. Junto aos gregos, voltou a ver a devastação e o horror da guerra, dessa vez, pelas tropas de Adolf Hitler. Angelo Roncalli, nessa altura com 63 anos, era um homem diligente que se empenhava na salvação das almas. Desse período sabe-se que salvou milhares de judeus de serem deportados com a “permissão de trânsito” fornecida pela Delegação Apostólica. Em 1944, foi transferido para Paris para ocupar a função de núncio apostólico, ali acompanhou o fim da guerra e também ajudou prisioneiros.
Entre duas guerras mundiais
Olhando os relatos da vida do Papa João XXIII compreende-se que ao passar por duas guerras mundiais, ele ficou visivelmente marcado por este triste e incompreensível mal; ao mesmo tempo, a vivência das duas batalhas renderam a João XXIII qualidades extraordinárias de conciliação e bondade, que o acompanhariam no futuro, ao se tornar Pontífice da Igreja Católica.
Em atividade diplomática na Bulgária em 1926. (crédito: www.fondazionepapagiovannixxiii.it)
Para o cardeal português dom Manuel Monteiro de Castro, penitenciário-mor emérito da Santa Sé, que como João XXIII ocupou durante muitos anos funções diplomáticas no Vaticano, a personalidade de João XXIII demonstra marcadamente sua capacidade de diálogo, especialmente com membros de outras religiões, como os ortodoxos e os muçulmanos. “Sobressaiu pela sua capacidade conciliadora, pelo seu interesse ecumênico, sinceridade e coragem, manifestada em salvar a vida a judeus durante a II Guerra Mundial”, sublinhou o cardeal.
Virtude enriquecida pela vida diplomática que exerceu em diversos países e que o conduziu mais tarde para a convocação do Concílio Ecumênico Vaticano II.
De acordo com o teólogo e historiador padre José Oscar Beozzo, o legado do ministério de João XXIII apresenta a “virada de uma Igreja focada menos em si mesma e mais nas necessidades e angústias de toda a humanidade”. Para ele, Angelo Roncalli deu vigor ao movimento ecumênico do século XX, abriu o diálogo com os judeus e crentes de diversas religiões e também os com os não crentes, porque acreditava que “os seres humanos fazem parte da mesma família de Deus e têm responsabilidades recíprocas”.
João XXIII marcou seu pontificado ainda com a publicação de duas encíclicas: ‘Mater et Magistra’ e ‘Pacem in Terris’. A primeira tratava sobre a questão social à luz da doutrina cristã e a segunda sobre a paz, a partir da justiça, caridade e liberdade para todos os povos.
Na encíclica ‘Pacem in Terris’, número 111, João XXIII pedia explicitamente que a corrida armamentista e o uso das armas atômicas deveriam ser gradualmente banidas para garantir a justiça, a reta razão e o sentido da dignidade humana.
Fora do eixo da Primeira e Segunda Guerra Mundial, papa João XXIII lutou sem descanso para o fim da Crise dos Mísseis de 1962, um dos momentos mais dramáticos do século passado, em que o mundo esteve perigosamente perto da Terceira Guerra Mundial.
A pedido do então presidente dos Estados Unidos da América, John Kennedy, João XXIII escreve ao primeiro ministro soviético Nikita Kruschev e também ao presidente norte-americano e lança um apelo comovente na Rádio Vaticano que ressoa até hoje.
"Paz! Paz! Nós renovamos hoje esta solene súplica. Nós suplicamos a todos os governantes a que não fiquem surdos a este grito da humanidade. Que façam tudo aquilo que está ao seu alcance para salvarem a paz. Evitarão assim ao mundo os horrores de uma guerra, da qual não se pode prever quais serão as terríveis consequências”, clamou João XXIII.
Por esses feitos e muitos outros, Angelo Giuseppe Roncalli é reconhecido pela Igreja e por todo o mundo como o ‘mediador da paz’.
A encíclica ‘Pacem in Terris’, publicada dois meses antes de sua morte é considerada quase que o seu testamento espiritual.
Por ter colaborado com o salvamento de milhares de judeus da perseguição nazista, o Memorial do Holocausto de Jerusalém marcou uma inscrição no portal Yad Vashem sobre João XXIII: "Foi uma das pessoas mais sensíveis à tragédia judaica e fez muito para salvá-los".
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