A realidade experimentada por todos nós, humanos, crentes e não crentes, nestes últimos tempos, fez buscar, no fundo do baú de nossa humanidade a virtude teologal da fé. Nenhum ser humano vive sem fé! Mesmo quem não acredita em uma divindade, seja qual for, crê na sua própria falta de fé e a alimenta.
Quem não crê nem mesmo em sua própria falta de fé não subsiste, autodestrói-se. Portanto, com suas várias interfaces ela permeia o humano, mesmo que esteja latente. Ela é uma centelha presente na alma humana que anima nosso espírito para trilharmos nosso caminho existencial neste mundo. Encoraja-nos a caminhar. E na escuridão da noite, com suas tempestades, desperta nossos mitos e ritos fundantes para encontrarmos no reverso de nós mesmos uma tábua de salvação que nos dá serenidade ao coração.
As Escrituras a registra como adesão a Palavra de Deus e as implicações decorrentes. Hebreus 11 nos apresenta um texto belíssimo sobre a experiência de fé e, no seu início, a define de modo simples como “a realidade dos bens esperados, a prova das coisas que não se veem. Foi graças a ela que os antigos obtiveram um belo testemunho. Pela fé compreendemos que os mundos foram formados por uma palavra de Deus, de modo que o que se vê provém do que não é visível” (Hb 11,1-3). Mas é no Novo Testamento que esta terminologia prevalece, sendo usada inúmeras vezes.
Não será pelo fato de o Novo Testamento atestar dois eventos que, aos olhos humanos, não há uma explicação: a encarnação do Verbo e a sua morte e ressurreição? Não é ela a explicar-nos a loucura divina e, ao mesmo tempo, a alentar-nos, quando a ordem de nosso mundo interno e externo é subvertida? Ora, se assim o é, mais uma vez a fé é algo que nos faz perfazer o caminho de sentido para aquilo que a finitude de nossa compreensão não consegue responder, apenas intuir do mistério.
A pandemia do Covid-19 nos faz refletir sobre a nossa fé em todos os sentidos: sua existência, como elemento que nos anima e nos faz crer em um ser Supremo; a sua prova, ao passo que nos confronta sobre nossas crenças diante do perigo; e a sua ausência, como negação da própria humanidade e da divindade.
Quando não se tem fé na humanidade ou na divindade, temos a corrosão dos valores e a sociedade começa a entrar em um processo de autofagia, astenia e agonia profundas.
Um não-crente não necessita acreditar em Deus, no entanto, pode possuir fé na humanidade e cultivar valores que se confluem com aqueles cultivados pelo homem crente no transcendente. Um crente pode acreditar em Deus e não acreditar no humano, pode ser apenas um fundamentalista. O fundamentalismo é a mais profunda ausência de fé, é o uso esquizofrênico e manipulador do crer, transvestido de fé, para justificar as próprias neuroses decorrentes da falta de fé no divino e na humanidade. Por essa razão, o fundamentalismo permite matar em nome de Deus, pois nega a divindade do outro.
Leia MaisNão pode comungar? Reze a oração para a comunhão espiritualComo viver bem a nossa espiritualidade para ser mais feliz70 meditações para cultivar a espiritualidade no cotidianoExperimentar o deserto na vida espiritualA fé é uma certeza que comporta dúvidas, diferentemente do fundamentalismo que não o permite, e por isso, não se renova.
A fé apresenta-nos como confirmação do divino em nós que nos anima e nos encoraja e nos faz atravessar a noite escura do sentido das coisas e até mesmo do próprio crer, abrindo-nos os sentidos de nosso espírito, a tal ponto de nos fazer ouvir a voz divina, experimentá-la e ver a sua luz a iluminar nossos porões escuros, onde estão escondidos nossos medos e incertezas.
A fé é pedagógica, pois toma pela mão nossa existência para nos colocar nos braços da transcendência, permitindo-nos ver nosso lado luminoso e descortinar a esperança para ver o horizonte sem fim do divino. Nos momentos de desespero, ela é porto seguro!
Mas há uma fé que precisamos resgatar, enquanto sociedade, escondida como tesouro em um baú empoeirado. É a fé antropológica. Essa fé, independe de crer na divindade, mas na humanidade, não como um conceito absoluto, sim como lugar e condição para fazer o bem. Nesse sentido, a fé antropológica possui matizes éticas profundas e, pode, com muita naturalidade confluir com os valores da fé teológica. É o esquecimento desta fé antropológica que não nos permite ver o rosto do outro que se revela diante de nós, enquanto semelhante, próximo e vulnerável. Quando o ser humano se esquece do rosto do outro priva-se da própria visão e ao não enxergá-lo não o considera, minimizando-o como existência utilitária a ser descartada. Então, permite anulá-lo.
Certamente se tivéssemos cuidado de nossa humanidade de modo digno, não estaríamos tão desolados como estamos. E esse cuidado não o tivemos desde a nossa própria casa, enquanto lugar comum que habitamos e onde tecemos nossas relações. Nosso descuido foi fazendo acumular tantos males: ganância, lucro, guerras, violência, morte, exploração dos recursos do planeta, falta de compaixão e solidariedade com o próximo.
Chegou a hora de tomarmos consciência dessa dimensão de nossa vida e, tanto melhor, se convergirmos fé teológica e antropológica.
O homem de fé é aquele que se põe a caminho, mesmo sem saber onde chegará. Mas dentro de si há uma bússola que, em cada passo, oferece-lhe um lampejo a marcar o caminho correto. É como os pássaros que, de algum modo, intuem que o inverno chega e é necessário, junto com os demais, buscarem outro horizonte para experimentarem a luz do sol e sobreviverem.
Que este tempo de inverno nos guie rumo às belezas do nascer e do pôr-do-sol de nossa fé, a serem descortinadas em nosso porvir existencial. Andar com fé eu vou... caminhar com fé, andamos...
Perfil do padre Rogério Gomes no Lattes.
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