Introdução
“É agora o momento favorável. É agora o dia da salvação” (2 Cor 6,2). Com estas palavras o apóstolo Paulo se dirigia aos Coríntios. Mas esta afirmação do apóstolo nos estimula para a seguinte pergunta: a Sagrada Escritura faz uma distinção entre tempos mais favoráveis e tempos menos favoráveis para a salvação? Se a resposta for positiva, podemos encontrar um fundamento para falar de um Ano Santo, mais especificamente deste Ano Santo, ou Jubileu, da Misericórdia, anunciado pelo Papa Francisco na sua bula Misericordiae Vultus, do dia 11 de abril de 2015, véspera do II Domingo de Páscoa ou da Divina Misericórdia.As primeiras palavras da bula nos levam a fixar o olhar da mente e do coração para Jesus Cristo que é o rosto da misericórdia do Pai.
Esta reflexão procura responder às seguintes perguntas: Qual é a origem do termo “Jubileu”? Existem tempos favoráveis para a salvação? De onde provém a eficácia espiritual do Ano Santo? Qual é o projeto de Deus rompido pelo pecado, que é retomado pela conversão? Qual é o sentido da Peregrinação e da Indulgência?
Na conclusão procurar-se-á apresentar uma experiência significativa de misericórdia, vivenciada pelo papa durante sua adolescência, como também dirigir o olhar para Maria que dá um sentido ao “momento favorável” do Ano Santo.
A origem do Jubileu está ligada ao Antigo Testamento. A lei de Moisés tinha fixado para o povo de Israel um ano especial, como pode ser lido no livro do Levítico:
Declarem santo o quinquagésimo ano e proclamem a libertação para todos os moradores do país. Será para vocês um ano de júbilo: cada um de vocês recuperará a sua propriedade e voltará para a sua família...O quinquagésimo ano será para vocês um ano de júbilo: vocês não semearão, nem ceifarão as espigas que tiverem nascido espontaneamente, nem colherão uvas das videiras não podadas. O jubileu será uma coisa sagrada, e vocês comerão o que o campo produzir. Nesse ano de júbilo cada um recuperará a sua propriedade. (Lev. 25, 10-13).
Este ano era anunciado ao som da trombeta (Lev. 25,9). A trombeta era um chifre de carneiro, que em hebraico se chama jobhel, daí a palavra Jubileu.
A celebração deste ano significava, entre outras coisas, a devolução das terras aos seus antigos proprietários, a remissão das dívidas, a libertação dos escravos e o repouso da terra.
No Novo Testamento, Jesus se apresenta como Aquele que veio levar a termo o antigo Jubileu, pois, citando o profeta Isaías (61,1-2), ele chegou para "proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 4, 18-21).
O Jubileu é indicado com a expressão “Ano Santo” porque tem como finalidade fortalecer a fé em Cristo
O Jubileu é indicado com a expressão “Ano Santo” porque tem como finalidade fortalecer a fé em Cristo, único Salvador, e, consequentemente, favorecer a solidariedade seja na Igreja, como na sociedade.
A primeira celebração do Ano Santo na Igreja aconteceu no ano de 1300. No começo, seguindo o ritmo do Antigo Testamento, foi programada esta celebração a cada 50 anos. O segundo Ano Santo, pois, aconteceu no ano de 1350, durante o pontificado de Clemente VI. Mais tarde, a partir do ano de 1425, a celebração foi realizada a cada 25 anos, com referência aos Anos Santos ordinários.
Mas há também Anos Santos extraordinários: como o atual, proclamado pelo Papa Francisco.
O nosso Deus não se limitou a criar o mundo, mas quis entrar em contato com o homem, quis manifestar-se ao homem: é o Deus de Abraão, de Isaac, de Jacó, de Jesus Cristo. Ele se revelou ao homem para salvá-lo, libertando-o do pecado e chamando-o a uma relação de profunda amizade até torná-lo “participante da natureza divina” (2 Pt 1,4).
Este chamado à salvação nos insere na história da humanidade e encontra seu ponto mais alto na vinda de Cristo.Podemos citar, a esse respeito, a feliz afirmação da encíclica Fides et ratio “A encarnação do Filho de Deus permite ver realizada uma síntese definitiva que a mente humana, por si mesma, nem sequer poderia imaginar: o Eterno entra no tempo, o Tudo esconde-se no fragmento, Deus assume o rosto do homem (N. 12)”.
O tempo todo é tempo de salvação, a história inteira é história da salvação. Mas no arco de toda a história há alguns “segmentos de tempo”, uns tempos propícios, nos quais a salvação, por assim dizer, urge, age com particular intensidade.
Poderíamos dizer que Deus nos chama sempre para sermos salvos; mas há momentos nos quais ele grita.
Vamos considerar, a esse respeito, alguns trechos do evangelho.
Jesus em Mt 16,2-3 fala do tempo messiânico e diz aos fariseus e aos saduceus: “Ao pôr-do-sol vocês dizem: ‘Vai fazer bom tempo, porque o céu está vermelho’. E de manhã: ‘Hoje vai chover, porque o céu está vermelho-escuro’. Olhando o céu, vocês sabem prever o tempo, mas não são capazes de interpretar os sinais dos tempos”.
Os termos usados eram “Chronos” (Χρόνος) e “ Kairós” (καιρός), com significados diferentes.
Gostaria de ressaltar, seja no texto citado de 2 Cor 6,2, como neste de Mt 16,3, a diferença que os antigos gregos faziam quando falavam do “tempo”. Os termos usados eram “Chronos” (Χρόνος) e “ Kairós” (καιρός), com significados diferentes. “Cronos” é o tempo que chamados de “cronológico”. É o tempo, diríamos hoje, do “relógio”, no qual não há nenhuma diferença entre um segundo e outro segundo, um minuto e outro minuto: é o tempo quantitativo. Mas o termo “Kairós” indica um “tempo favorável”, um “tempo oportuno”: é o tempo qualitativo. Os dois textos citados usam o termo “Kairós” e não “Chronos”.
Vamos para outro texto: Lucas 19,44. Jesus, depois de ter chorado sobre Jerusalém, anuncia a sua destruição e a sua causa, nestes termos: “Os inimigos esmagarão você e seus filhos e não deixarão em você pedra sobre pedra. Porque você não reconheceu o tempo em que Deus veio visitá-la”. Aqui também Lucas usa o termo “Kairós”.
O Evangelista João várias vezes coloca na boca de Jesus a expressão “A minha hora”. “Minha hora ainda não chegou” (2,4), diz Jesus para Maria no contexto das bodas de Caná.
Depois de ter apresentado um diálogo tenso entre Jesus e seus adversários na ocasião da festa dos Tabernáculos, João escreve: “Tentaram prender Jesus. Mas ninguém pôs a mão em cima dele, porque a hora dele ainda não tinha chegado” (7,30).
E, durante a última ceia Jesus diz: “Pai, chegou a hora. Glorifica o teu filho” (17,1).
Esta hora de Jesus para a qual se dirige toda a sua vida e a sua missão é aquela da sua morte-ressurreição.
Portanto: o tempo todo é história da salvação. O tempo da Igreja, que começa com a Encarnação do Filho de Deus e vai até o fim do mundo é, a título especial, tempo de salvação.
O tempo da presença de Jesus nesta terra é ainda mais tempo de salvação.
Jesus está presente! Mesmo assim, ele pode afirmar que ainda existe um outro “momento favorável”, ou “momento oportuno”, a sua “hora”, que ainda não chegou. É o momento mais alto: o da sua morte-ressurreição.
A partir destes textos do Evangelho podemos concluir que existem “momentos favoráveis”, “tempos mais oportunos” do que outros em ordem à realização da salvação.
Estes “momentos”, ou “tempos” particularmente oportunos podem ser subdivididos por ritmos diários (os momentos de oração durante o dia), semanais (o domingo, dia do Senhor), anuais (advento e quaresma); por ritmos comunitários litúrgicos, ou não (exercícios espirituais, encontros de espiritualidade dos vários grupos eclesiais etc.). Há também os ritmos do Ano Santo ordinário (a cada 25 anos), ou extraordinário: este Ano Santo da Misericórdia, ou os anteriores (no ano de 1933 Pio XI proclamou o Ano Santo da Redenção, para lembrar os 1900 anos da morte-ressureição de Cristo; e em 1987 João Paulo II num outro Ano Santo Extraordinário lembrou os 1950 anos da Redenção).
Todos estes “momentos” naturalmente não são algo de mágico, pois exigem as devidas disposições interiores (a fé) para serem entendidos e experimentados com fruto espiritual. Com um simples exemplo: pense-se numa pessoa que se encontra num quarto. Enquanto não abrir a janela, a luz do sol que resplandece não pode entrar no quarto, que, assim, permanece escuro. Da mesma forma, é necessário abrir nossa inteligência e nosso coração a esta graça de Deus que é o Ano Santo.
A essa altura precisa colocar também a seguinte pergunta: de onde provém a eficácia do Ano Santo?
A essa altura precisa colocar também a seguinte pergunta: de onde provém a eficácia do Ano Santo? Ou, em outros termos, por que o Ano Santo é um “momento oportuno”?
A eficácia do Ano Santo provém da oração da Igreja. Isso significa que a Igreja, esposa de Cristo, pede, com a certeza de que sua oração vai ser atendida, para que Ele derrame de maneira abundante seus dons para todos os cristãos. É esta vontade eficaz da Igreja que torna o Ano Santo um momento oportuno da salvação.
Mais uma pergunta: quais são os elementos do Ano Santo?
São particularmente três: a conversão, a peregrinação e a indulgência.
A conversão acontece através da reconciliação com Deus e com os irmãos.
O seguinte texto de São Paulo é particularmente significativo para apresentar a reconciliação com Deus:
Se alguém está em Cristo, é nova criatura. As coisas antigas passaram; eis que uma realidade nova apareceu. Tudo isso vem de Deus, que nos reconciliou consigo por meio de Cristo, não levando em conta os pecados dos homens e colocando em nós a palavra da reconciliação. Sendo assim, exercemos a função de embaixadores em nome de Cristo, e é por meio de nós que o próprio Deus exorta vocês. Em nome de Cristo suplicamos: reconciliem-se com Deus. (2 Cor 5,17-20).
Observe-se que a reconciliação é uma iniciativa de Deus: Ele mesmo intervém e, estando em paz com Ele, nós nos tornamos criaturas novas, graças à morte de Cristo.
E Jesus Cristo revela a bondade do Pai para com os pecadores: pode-se pensar nas parábolas da ovelha perdida, da moeda perdida e do filho pródigo, ou dizendo melhor, do “Pai misericordioso” (Lucas 15).
A esse respeito, há uma feliz coincidência entre este “Ano Santo da Misericórdia” e a leitura do evangelista Lucas, neste mesmo ano litúrgico. Dante Alighieri, na sua obra latina De Monarchia (I,16) definiu São Lucas com a seguinte expressão: Scriba mansuetudinis Christi, a saber, “o escritor que fala da mansidão de Cristo”. De fato São Lucas narra parábolas de Jesus, centradas na misericórdia de Jesus e na confiança nele que caminha entre os pobres, doentes, humilhados e sofredores da terra: além das três anteriormente citadas, ele apresenta as parábolas do bom samaritano (10,25-37), do pobre Lázaro (16,19-31), da viúva insistente diante do juiz iníquo (18,1-18), do fariseu e do publicano (18,9-14). Narra encontros de amizade e compaixão: Marta e Maria em Betânia (10,38-42), a pecadora arrependida (7,36-50), Zaqueu (19,1-10.28), e, particularmente, o Bom Ladrão (23,39-43). Lucas ressalta as atitudes de Jesus que consola e ampara, nos seguintes milagres: o jovem filho da viúva de Naim (7,11-17), a mulher curvada curada em dia de sábado (13,10-17), o hidrópico curado também no sábado 14,1-6), a cura dos dez leprosos (17,11-19).
Mais uma coincidência: entre Dante Alighieri e o primeiro Ano Santo. O Papa Bonifácio VIII no ano de 1300 instituiu o primeiro Ano Santo. E Dante, nesta circunstância, foi peregrino em Roma. Chega a falar disso na Divina Comédia (Inferno XVIII, 28-33) lembrando que, devido a uma grande multidão de fiéis, foi necessário organizar o fluxo dos mesmos dividindo aqueles que iam do “Castelo Santo Ângelo” até a Basílica de São Pedro, dos outros que, retornando, faziam o caminho contrário.
Voltando à parábola do “Pai Misericordioso”, mais conhecida como a “parábola do filho pródigo” (Lucas 15,11-32), percebe-se que o homem se afasta de Deus, com a experiência do pecado, mas o pecado não produz felicidade.
A respeito disso, parece que a cultura atual perdeu o senso do pecado: no fundo, perdendo-se o senso de Deus, perde-se o senso do pecado.
Se a reconciliação pressupõe uma ruptura, isso significa que existia um projeto cuja execução foi interrompida. Pergunta-se, então, qual foi o projeto de Deus para o homem. Consideram-se, pois, as seguintes “partes” do projeto.
A esse respeito há o seguinte texto interessante do cardeal Ratzinger, publicado poucos meses antes dele ser eleito papa com o nome de Bento XVI.
No confronto com a ciência e no diálogo com os filósofos da era moderna tem que voltar a questão básica: o que mantém o mundo? É a matéria que cria a razão, é o puro acaso que produz o significado, ou, pelo contrário é a inteligência, o logos, a razão que vem antes, de tal maneira que a razão, a liberdade e o bem já fazem parte dos princípios que constituem a realidade? (RATZINGER, 2005, p. 115).
O homem, neste sentido, é constituído como senhor de toda a criação sensível.
Muito atual esta mensagem da Bíblia, numa época em que o homem está sofrendo as consequências do desrespeito da natureza, que não foi cultivada e guardada “como um jardim”.
Em outros termos, o homem leva para frente sua missão numa relação de amor e de colaboração com a mulher.
Isso significa que o homem tem um profundo equilíbrio nos seus instintos e nas suas inclinações.
Em outros termos, a amizade com Deus constituía a origem e a garantia da felicidade do homem.
Agora pergunta-se o que acontece no homem que interrompeu a execução do projeto de Deus através do pecado. Consideram-se, então, os seguintes aspectos do projeto interrompido, com suas consequências no homem.
As respostas de Adão e Eva mostram, por um lado, que a relação entre o homem e a mulher não é mais como antes; e, ao mesmo tempo, culpa-se sempre o outro pelo comportamento errado.
Em outros termos, acabou a alegria de um amor verdadeiro e profundo entre os dois.
Isso indica que as paixões desenfreadas levam o homem para o delito e para a guerra.
A reconciliação com Deus, através de Jesus Cristo, recupera o projeto de Deus para com o homem. Mas, para que isso aconteça, o homem é chamado a acolher Deus que revela sua bondade e misericórdia. E o momento da oração é sinal de que estamos respondendo à sua palavra de salvação. E uma modalidade especial de oração se encontra nos sacramentos. Não podemos, pois, esquecer que o Ano Santo tem como tapa obrigatória a celebração do sacramento da Reconciliação (ou Confissão) e da Eucaristia.
O Papa Francisco, neste sentido, lembra que para receber a indulgência é necessário, além da confissão, da comunhão, da reza do Credo e da oração segundo as intenções do Papa, fazer obras de misericórdia com os mais necessitados.
Mas o pecado não é somente uma ruptura com Deus. Os textos do Gênesis antes citados apontam também para a ruptura com os homens. Por este motivo a reconciliação precisa acontecer seja com Deus, como com os homens. A esse respeito é muito significativa a novidade deste Jubileu da misericórdia que começou não na Basílica de São Pedro, mas na Catedral de Notre Dame de Bangui, na República Centro-Africana. O Papa Francisco, neste sentido, lembra que para receber a indulgência é necessário, além da confissão, da comunhão, da reza do Credo e da oração segundo as intenções do Papa, fazer obras de misericórdia com os mais necessitados. E, para ressaltar este aspecto, foram abertas portas santas fora dos lugares de culto. No dia 18 de dezembro o Papa pessoalmente abriu a porta santa numa hospedaria para pobres da Caritas de Roma; e o cardeal Francesco Montenegro, que é arcebispo de Agrigento, em cuja jurisdição se encontra a famosa ilha de Lampedusa, abriu uma porta santa no lugar onde muitos migrantes morreram durante a travessia.
Até agora refletiu-se sobre a conversão. Mas há outros aspectos importantes ligados à experiência do Jubileu: a Peregrinação e a Indulgência.
A peregrinação faz reviver a experiência da história da salvação: a história de Abraão peregrino de Ur dos Caldeus para a terra que Deus lhe teria mostrado (Gen. 12,1); a peregrinação de Israel rumo à Terra Prometida; a peregrinação de Jesus rumo a Jerusalém. Aqui encontramos a perspectiva bem clara no evangelista Lucas, a partir de Lucas 9,51. E a vida cristã é uma peregrinação até Deus. A esse respeito, não podemos esquecer que este Ano Santo coincide com os 50 anos da conclusão do Concílio Vaticano II. E um dos documentos mais importantes do Concílio foi a Constituição Dogmática “Lumen Gentium”, sobre a Igreja. O capítulo VII deste documento apresenta o seguinte título: “A índole escatológica da Igreja peregrina e sua união com a Igreja Celeste”.
Passa-se agora a refletir sobre a indulgência. Antes de tudo, é necessário esclarecer o significado do termo. “Indulgência” indica, na doutrina católica, a promessa de uma particular intercessão da Igreja para que Deus perdoe a pena temporal dos pecados que já foram perdoados, mas cujas consequências continuam. Em outros termos, o pecador arrependido e perdoado inicia um processo de conversão, ou mudança de vida radical, que exige tempo e perseverança. Nesse processo a Igreja acompanha o fiel arrependido com sua oração de intercessão. Como se vê, existe para os não esclarecidos a possibilidade de confundir “indulgência” com “perdão dos pecados”. Geralmente, para a concessão de uma indulgência, a Igreja pede, além da participação aos sacramentos, como acima lembrado, um gesto que seja sinal de conversão, como uma esmola, uma oração, uma peregrinação etc. A indulgência é considerada “plenária”, quando diz respeito ao perdão de toda a pena temporal; nos outros casos, a indulgência é “parcial”.
A doutrina e a praxe das indulgências têm suas raízes na praxe penitencial da Igreja primitiva, que exigia dos penitentes penitências prolongadas e duras, como sinal de sua conversão. Na praxe, então, a Igreja, com sua intercessão se punha solidariamente ao lado dos penitentes.
Mas, para entender hoje o que é a indulgência, vale a pena recorrer ao texto do Catecismo da Igreja Católica, a partir do n. 1471.
A doutrina e a prática das indulgências na Igreja estão estreitamente ligadas aos efeitos do sacramento da Penitência.
O QUE É A INDULGÊNCIA?
«A indulgência é a remissão, perante Deus, da pena temporal devida aos pecados cuja culpa já foi apagada; remissão que o fiel devidamente disposto obtém em certas e determinadas condições, pela ação da Igreja, a qual, enquanto dispensadora da redenção, distribui e aplica por sua autoridade o tesouro das satisfações de Cristo e dos santos. A indulgência é parcial ou plenária, consoante liberta parcialmente ou na totalidade da pena temporal devida ao pecado. O fiel pode lucrar para si mesmo as indulgências [...], ou aplicá-las aos defuntos.
AS PENAS DO PECADO (n. 15472-1473)
Para compreender esta doutrina e esta prática da Igreja, deve ter-se presente que o pecado tem uma dupla consequência. O pecado grave priva-nos da comunhão com Deus e, portanto, torna-nos incapazes da vida eterna, cuja privação se chama «pena eterna» do pecado. Por outro lado, todo o pecado, mesmo venial, traz consigo um apego desordenado às criaturas, o qual precisa de ser purificado, quer nesta vida quer depois da morte, no estado que se chama Purgatório. Esta purificação liberta do que se chama «pena temporal» do pecado. Estas duas penas não devem ser consideradas como uma espécie de vingança, infligida por Deus, do exterior, mas como algo decorrente da própria natureza do pecado. Uma conversão procedente duma caridade fervorosa pode chegar à total purificação do pecador, de modo que nenhuma pena subsista.
O perdão do pecado e o restabelecimento da comunhão com Deus trazem consigo a abolição das penas eternas do pecado. Mas subsistem as penas temporais. O cristão deve esforçar-se por aceitar, como uma graça, estas penas temporais do pecado, suportando pacientemente os sofrimentos e as provações de toda a espécie e, chegada a hora, enfrentando serenamente a morte: deve aplicar-se, através de obras de misericórdia e de caridade, bem como pela oração e pelas diferentes práticas da penitência, a despojar-se completamente do «homem velho» e a revestir-se do «homem novo».
OBTER A INDULGÊNCIA DE DEUS MEDIANTE A IGREJA (n. 1478)
A indulgência obtém-se mediante a Igreja que, em virtude do poder de ligar e desligar que lhe foi concedido por Jesus Cristo, intervém a favor dum cristão e lhe abre o tesouro dos méritos de Cristo e dos santos, para obter do Pai das misericórdias o perdão das penas temporais devidas pelos seus pecados. É assim que a Igreja não quer somente vir em ajuda deste cristão, mas também incitá-lo a obras de piedade, penitência e caridade.
Numa tentativa de esclarecimento, pode-se refletir sobre a pergunta que um fariseu fez a Jesus: "Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?". Jesus respondeu: "Amarás ao Senhor teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e toda a tua mente. Este é o maior e o primeiro mandamento. E segundo é-lhe semelhante: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo". (Mateus 22, 35-39).
Quem de nós ama o próximo como si mesmo?
Vamos refletir sobre esta resposta e nos perguntar com sinceridade: quem de nós ama a Deus com todo o coração, com toda a alma e com toda a mente? Quem de nós ama o próximo como si mesmo? No dia 1º novembro a Igreja celebra a festa de todos os santos e continuamente nos apresenta uns "modelos" daqueles que, de verdade, amaram a Deus e ao próximo "com toda a sua vida".
Nós, humildemente, olhamos para estes modelos e precisamos confessar: eu não amo a Deus como um São Francisco, uma Santa Clara, um Santo Afonso, um S. João XXIII, uma Madre Paulina, um Frei Galvão etc.; ou como muitos outros cristãos pouco conhecidos, mas que deram um extraordinário exemplo de fé e de amor.
Nosso amor a Deus e ao próximo frequentemente fica misturado com egoísmo, com vaidade, com presunção, com negligência, com falta de delicadeza, com instabilidade, com "pouca fé". Daí a necessidade de uma conversão sempre mais profunda: e a indulgência encontra o espaço nesse contínuo esforço de conversão do cristão que procura tornar-se “homem novo” e sente-se acompanhado pela oração da Igreja. Sugere-se, a esse respeito, ler o que Bento XVI escreveu na encíclica Spe salvi, em que ele descreve as diferentes situações do homem diante da sua vocação para a verdade e para o amor.
Pode haver pessoas que destruíram totalmente em si próprias o desejo da verdade e a disponibilidade para o amor; pessoas nas quais tudo se tornou mentira; pessoas que viveram para o ódio e espezinharam o amor em si mesmas. Trata-se de uma perspectiva terrível, mas algumas figuras da nossa mesma história deixam entrever, de forma assustadora, perfis deste género. Em tais indivíduos, não haveria nada de remediável e a destruição do bem seria irrevogável: é já isto que se indica com a palavra inferno.
Por outro lado, podem existir pessoas puríssimas, que se deixaram penetrar inteiramente por Deus e, consequentemente, estão totalmente abertas ao próximo – pessoas em quem a comunhão com Deus orienta desde já todo o seu ser e cuja chegada a Deus apenas leva a cumprimento aquilo que já são (n. 45).
Mas, segundo a nossa experiência, nem um nem outro são o caso normal da existência humana. Na maioria dos homens – como podemos supor – perdura no mais profundo da sua essência uma derradeira abertura interior para a verdade, para o amor, para Deus. Nas opções concretas da vida, porém, aquela é sepultada sob repetidos compromissos com o mal: muita sujeira cobre a pureza, da qual, contudo, permanece a sede e que, apesar de tudo, ressurge sempre de toda a abjecção e continua presente na alma (n. 46).
Esta “maioria dos homens” necessita, pois, completar o processo de conversão. E a indulgência, como diz o Papa Francisco na bula Misericordiae Vultus, “através da Esposa de Cristo, alcança o pecador perdoado e liberta-o de qualquer resíduo das consequências do pecado, habilitando-o a agir com caridade, a crescer no amor em vez de recair no pecado”.
Uma conclusão a partir da vida do Papa Francisco e de uma perspectiva Mariana
A modo de conclusão, uma referência à vida do Papa Francisco e outra a Maria.
O tema da misericórdia tocou profundamente a vida do jovem Jorge Mario Bergoglio e o acompanhou e o acompanha até hoje. Seu lema de Bispo é o seguinte: Miserando atque elegendo. A frase é tirada das Homilias de São Beda Venerável (672-735), o qual, comentando o episódio evangélico da vocação de São Mateus (Homilia 21: CCL 122 [CCL: Corpus Christianorum, Series Latina], 149-151), escreve: “Vidit ergo Iesus publicanum et quia miserando atque eligendo vidit, ait illi Sequere me” (Jesus viu um cobrador de impostos e olhando-o com amor o escolheu e disse: Segue-me). O texto oficial da Liturgia das Horas, adotado no Brasil, traduziu da seguinte maneira: “Viu o publicano, dele se compadeceu e o escolheu”.
Esta homilia é uma homenagem à misericórdia de Deus e está reproduzida na Liturgia das Horas da festa de São Mateus. Foi justo por ocasião da festa de São Mateus, no dia 21 de setembro de 1953, que, com quase 17 anos, Jorge Mario Bergoglio sentiu pela primeira vez a vocação à vida religiosa. Naquele dia, depois de uma confissão, o futuro Papa advertiu a presença no próprio coração da misericórdia de Deus, que o chamava a viver a vida como jesuíta, seguindo o exemplo de Santo Inácio de Loyola.
Quando foi eleito bispo, em 1992, Dom Bergoglio lembrou deste episódio da sua juventude, que marcou a sua escolha religiosa e assumiu a citada expressão de São Beda, também reproduzida no Brasão. Considera-se, pois, interessante esta ligação entre o Ano Santo da Misericórdia e o caminho espiritual que o Papa Francisco tinha iniciado quando era ainda adolescente.
Nesta reflexão falou-se sobre a “hora de Jesus”. È uma expressão típica do evangelista João. Este só duas vezes coloca a figura de Maria, Mãe de Jesus: nas bodas de Caná (Jo 2,1-11) e aos pés da cruz (Jo 19,25-27). Isto significa, no começo e no fim da vida pública de Jesus. Nos dois relatos Maria é chamada de “mulher”.
Quanto às bodas de Caná, Jesus fala da “hora” que ainda não chegou; e, na cruz, já chegou a sua “hora”.
O termo “mulher” lembra o drama do paraíso terrestre: a “inimizade” que acontecerá entre “a serpente” e “a mulher” (Gen. 3,15). No início da vida pública “ainda não chegou a hora”. Por isso, na chegada da “hora”, Maria receberá uma missão especial, que ainda não chegou: por enquanto ela está ainda esperando “a hora”.
As palavras de Jesus na cruz, dirigidas a Maria, não podem ser interpretadas apenas como algo de privado, pois este relato aparece num contexto messiânico: “para que se cumprisse a Escritura” (Jo 19,24.28).
O termo “mulher” utilizado por Jesus mostra que está se cumprindo a promessa divina proclamada no Gênesis: Maria é aquela “mulher”, cuja descendência “esmaga a cabeça” do espírito do mal, simbolizado pela serpente. E a imagem da “mulher” irá aparecer novamente no Apocalipse (12,1-6).
João, que “recebe em sua casa” Maria, não é indicado pelo nome, mas pela expressão “o discípulo que Jesus amava” (Jo 19,26).
Nesta “hora” nasce a Igreja, do lado de Cristo do qual saíram “sangue e água” (João 19,34): o que aponta para os sacramentos da Eucaristia e do Batismo.
Na linguagem “transparente” do evangelista João, as palavras apontam para uma realidade mais profunda. Assim, por exemplo, a água que Jesus pede à Samaritana aponta para a “água viva” (Jo 4,10); a ressurreição de Lázaro, aponta para Jesus que é “a ressurreição e a vida” (Jo 11,25). Neste sentido, cada cristão, tornando-se o “discípulo amado por Jesus”, recebe Maria “em sua casa”, na sua vida. E, no Ano Santo, experimenta-se uma “hora especial” de misericórdia salvadora, também com a contínua presença de Maria, unida indissoluvelmente à missão do Filho. Neste sentido, quase no fim da Bula de proclamação do Jubileu da Misericórdia, pode-se ler:
O pensamento volta-se agora para a Mãe da Misericórdia. A doçura do seu olhar nos acompanhe neste Ano Santo, para podermos todos nós redescobrir a alegria da ternura de Deus. Ninguém, como Maria, conheceu a profundidade do mistério de Deus feito homem. Na sua vida, tudo foi plasmado pela presença da misericórdia feita carne. A Mãe do Crucificado Ressuscitado entrou no santuário da misericórdia divina, porque participou intimamente no mistério do seu amor...Dirijamos-Lhe a oração, antiga e sempre nova, da Salve Rainha, pedindo-Lhe que nunca se canse de volver para nós os seus olhos misericordiosos e nos faça dignos de contemplar o rosto da misericórdia, seu Filho Jesus.
Com estas reflexões espera-se ajudar a entender e vivenciar de maneira profunda a celebração do Ano Santo da Misericórdia.
Lino Rampazzo
Doutor em Teologia pela Pontificia Università Lateranense (Roma)
Professor e Pesquisador no Programa de Mestrado em Direito do Centro Unisal – U.E. de Lorena (SP)
Coordenador do Curso de Filosofia da Faculdade Canção Nova (Cachoeira Paulista)
E-mail: lino.rampazzo@uol.com.br
Referências
A essa altura precisa colocar também a seguinte pergunta: de onde provém a eficácia do Ano Santo?
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