O Magnificat é o texto bíblico mais longo colocado na boca de Maria. Aqui não se fala de Maria, mas é Maria mesma que fala: fala de Deus e das maravilhas que realizou nela, no mundo e no seu povo.
Esse cântico foi declarado pelos documentos de Puebla o “espelho da alma de Maria”, o “cume da espiritualidade dos pobres de Javé e do profetismo da Antiga Aliança” e o “prelúdio do Sermão da Montanha”. Além disso, esse hino oferece uma síntese da espiritualidade cristã em óptica mariológica. Enfim, ele é considerado como o locus major da “mariologia da libertação”, e isso pelo próprio Magistério1.
O cântico de Maria ressoa de citações ou de evocações vétero-testamentárias, especialmente em relação ao Cântico de Ana, pronunciado por ocasião do nascimento do filho Samuel (1Sm 2,1-10) e este é o pano de fundo do Magnificat.
► Magnificat: encontro de amor
Com a expressão Magnificat, versão latina de uma palavra grega que tinha o mesmo significado, é celebrada a grandeza de Deus, que com o anúncio do anjo revela sua onipotência, superando as expectativas e as esperanças do povo da aliança e inclusive os mais nobres desejos da alma humana.
Frente ao Senhor, potente e misericordioso, Maria manifesta o sentimento de sua pequenez: “Minha alma proclama a grandeza do Senhor; alegra meu espírito em Deus, meu salvador, porque olhou para a humilhação de sua escrava” (Lc 1,46 -48). Provavelmente, o termo grego tapeinosis foi tirado do Cântico de Ana, a mãe de Samuel. Com ele indicam a “humilhação” e a “miséria” de uma mulher estéril (cf. 1Sm,11), que encomenda sua pena a consciência de sua pequenez perante Deus que, com decisão gratuita, colocou seu olhar sobre ela, jovem humilde de Nazaré, chamando-a a converter-se na mãe do Messias.
As palavras “de agora em diante todas as nações me chamarão bem-aventurada” (Lc 1,48), têm como ponto de partida a felicitação de Isabel, que foi a primeira a proclamar a Maria “bendita” (Lc 1,45). O cântico, com certa audácia, prediz que essa proclamação irá se estendendo e ampliando com um dinamismo incontido. Ao mesmo tempo, testemunha a veneração especial que a comunidade cristã sentiu pela Mãe de Jesus desde o século I. O Magnificat constitui a primícia das diversas expressões de culto, transmitidas de geração em geração, com as quais a Igreja manifesta seu amor à Virgem de Nazaré.
“O Poderoso fez em mim maravilhas; seu nome é santo e sua misericórdia chega aos fiéis de geração em geração” (Lc 1,49 -50). O que são essas “maravilhas” realizadas em Maria pelo Poderoso? A expressão aparece no Antigo Testamento para indicar a libertação do povo de Israel do Egito ou da Babilônia. No Magnificat refere-se ao acontecimento misterioso da concepção virginal de Jesus, acontecido em Nazaré depois do anúncio do anjo.
No Magnificat, cântico verdadeiramente teológico porque revela a experiência do rosto de Deus feita por Maria, Deus não só é o Poderoso, a quem nada é impossível, como havia declarado Gabriel (cf. Lc 1,37), mas também o Misericordioso, capaz de ternura e fidelidade para com todo ser humano.
“Ele faz proezas com seu braço; dispersa os soberbos de coração; derruba do trono os poderosos e enaltece os humildes; os famintos os sacias de bens e despede os ricos de mãos vazias” (Lc 1,51-53). Com sua leitura sapiencial da história, Maria nos leva a descobrir os critérios da misteriosa ação de Deus. O Senhor, confundindo os critérios do mundo, vem em auxílio dos pobres e pequenos, em detrimento dos ricos e dos poderosos, e, de modo surpreendente, enche de bens os humildes, que lhe encomendam sua existência (cf.Redemptoris mater, 37).
► O quê o Magnificat pode nos revelar sobre Maria?
Estas palavras do cântico, ao mesmo tempo em que nos mostram em Maria um modelo concreto e sublime, nos ajudam a compreender que o que atrai a benevolência de Deus é sobretudo a humildade de coração. Por último, o cântico exalta o cumprimento das promessas e a fidelidade de Deus com o seu povo escolhido: “Auxilia a Israel, seu servo, lembrando-se de sua misericórdia, como havia prometido a nossos pais, em favor de Abraão e sua descendência para sempre” (Lc 1,54-55).
Maria, cheia de dons divinos, não se detém a contemplar seu caso pessoal, mas compreende que esses dons são uma manifestação da misericórdia de Deus a todo seu povo.
Nela Deus cumpre suas promessas com uma fidelidade e generosidade abundantes. O Magnificat, inspirado no Antigo Testamento e na espiritualidade da filha de Sião, supera os textos proféticos que estão em sua origem, revelando na “cheia de graça” o início de uma intervenção divina que vai além das esperanças messiânicas de Israel: o mistério santo da Encarnação do Verbo.
O Magnificat assemelha-se a um salmo de louvor, composto de três partes:
a) uma introdução ao louvor de Deus;
b) o corpo do salmo, enumerando os motivos do louvor (muitas vezes, aparece nessa lista o “porquê”. Os motivos de se louvar a Yahweh são suas façanhas salvadoras em favor de seu povo ou em favor de algum de seus servos, bem como seus atributos divinos: poder, sabedoria, misericórdia);
c) a conclusão, que pode recapitular alguns dos motivos do louvor, incluir uma bênção ou apresentar uma súplica.
Portanto, o Magnificat se organiza num esquema tripartite, como propôs J. Dupont2, seguido nisso pela maioria dos autores subsequentes:
1) ação divina em Maria: mensagem pessoal;
2) ação divina na Humanidade: mensagem social;
3) e ação divina no Povo de Israel: mensagem étnica.
Analisemos, pois, este cântico louvor e, ao mesmo tempo, grito de libertação, seguindo a estrutura supracitada.
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1- Marialis cultus, 37; Redemptoris mater, 37; Libertatis conscieniae, 48, 97-100; Puebla, 297 e 1144.
2- “Le Magnificat comme discours sur Dieu”. In : Nouvelle revue théologique. Louvain, 1979.
Prof. Cleiton Robson
Associado da Academia Marial
Bacharelando em Teologia, pela Pontifícia Faculdade Seraphicum de Roma
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