Conheça mais sobre a arte sacra, navegando através de cada ponto nas cenas da Fachada Norte
A Fachada Norte da Basílica de Aparecida foi a primeira das quatro fachadas a receber o revestimento com mosaicos. A obra foi iniciada em 2019, mas, por causa da pandemia de Covid-19, só foi concluída em 2022. O tema principal dessa fachada é o livro do Êxodo. Mas também são encontradas algumas passagens do livro do Gênesis e do Novo Testamento. Os quase 4 mil metros quadrados de mosaicos foram concebidos e executados por 27 mosaicistas de diversas nacionalidades, ligados ao Centro Aletti, de Roma, Itália. As pedras que os compõem são provenientes de diversos países, entre eles o Brasil, a França, a Grécia e o Afeganistão.
Esses e os outros mosaicos das demais fachadas são como um organismo, onde tudo está interligado, o que impede qualquer um de se lembrar de si mesmo sem conjuntamente ver o rosto do outro, Daquele que por ele deu a própria vida para que possa viver, e que o faz sentir o quanto é precioso aos seus olhos. Os mosaicos fazem memória de uma realidade que abraça toda a nossa existência e a ultrapassa, abraçando a existência do universo e a existência do Rosto do Pai, do Filho e do Espírito, que regeneram completamente a minha existência.
A obra foi realizada com as doações feitas pela Família dos Devotos, iniciativa que reúne fiéis para que sejam possíveis as obras sociais, de construção e de evangelização do Santuário Nacional de Aparecida. Saiba você também como fazer parte, acessando aqui.
Sugerimos que você comece a contemplar os mosaicos pela lateral ocidental (lado esquerdo) da Fachada Norte, que está voltada para a Capela das Velas, onde encontramos a história de José do Egito. Desejamos uma boa visita a você!
José, filho de Jacó, é vendido como escravo por seus irmãos(Gn 37,2-36)
Os irmãos de José, vendo que seu pai o amava mais que a todos eles, odiavam-no e não podiam mais falar-lhe amigavelmente. (Gn 37,4)
“Abraão gerou Isaac; Isaac gerou Jacó; Jacó gerou Judá e seus irmãos” (Mt 1,2). As cinco primeiras cenas que encontramos na lateral ocidental (lado esquerdo) da Fachada Norte contam a história de José, também conhecido como José do Egito. Na tradição bíblica, José e os outros filhos de Jacó deram origem às 12 tribos de Israel, maneira como o povo do Antigo Testamento se organizava nos seus primórdios.
A história de José se encontra no Livro do Gênesis. José é amado pelo pai, Jacó (também chamado de Israel), mas de um modo possessivo, e isso provoca nos irmãos grande inveja e ciúme. Eles querem matá-lo sem nenhum motivo, exatamente como é dito para Cristo, eles o odiavam sem motivo (Jo 15,25). Certo dia, José foi enviado por seu pai para encontrar os irmãos e verificar como estava o rebanho. Só de vê-lo, os irmãos dizem “vamos assassiná-lo, vamos matá-lo”. E então, de algum modo, seu irmão Rúben intervém e consegue ao menos salvá-lo da morte.
Atiram-no em uma cisterna vazia, o que diz tudo. A cisterna é feita para água e está vazia. No mosaico, José é retratado sem encostar na cisterna, pois é sustentado por Deus.
A água é vida. Jacó, com seus filhos, não têm a vida. A vida é quando um reconhece o outro: eu sou porque você é. Isso é o que os irmãos ainda não conseguem entender, por isso, não são irmãos. E então eles o vendem para o Egito por vinte moedas de prata, representadas no mosaico junto aos negociantes e o camelo.
Para explicar o sumiço de José a seu pai, retiram a túnica de seu irmão, matam um cabrito e sujam a veste com o sangue do animal. Ao ver a túnica, José quer morrer e não vê mais sentido para sua vida.
O patrão confiou a José tudo o que possuía, sem mais se ocupar com coisa alguma, senão com o pão que comia. José era belo de porte e de semblante. (Gn 39,6)
Quando os negociantes chegam ao Egito, José é vendido a Potifar, que era oficial do Faraó. José se comporta como sempre: como um homem muito bom. O seu senhor percebia que Deus estava com ele, e o fez administrador de sua casa. A Bíblia diz que José era belo de forma e muito atraente no fazer, e isso vai tornar-se um problema para ele.
A mulher de seu patrão queria seduzi-lo e, não conseguindo, o tomou fisicamente. José escapou, mas ela conseguiu ficar com a túnica dele e utilizou isso para tentar incriminá-lo. No mosaico vemos que próximo a ela está representado o demônio, que na Fachada Norte aparecerá apenas duas vezes.
José é preso pela honestidade, porque não cedeu à mulher que o provocou para seduzi-lo; ele não aceitou, se recusou, e foi colocado na prisão. É a punição do bem, assim como aconteceu com Cristo. Por isso seu rosto, nessa cena, recorda a face de Jesus. José está totalmente entregue, resignado, a exemplo do Filho de Deus.
Mas é ali, no sofrimento da prisão, que a vida de José vai mudar. Aquilo que parecia ser uma maldição, transformar-se-á na glória de José. É dentro da prisão que ele revela seu dom de interpretar os sonhos a dois chefes da corte do Faraó que estão presos junto com ele.
José explica ao Faraó as mensagens de Deus em seus sonhos(Gn 40,1–41,36
Disse o faraó a José: “Tive um sonho e não há ninguém que saiba interpretá-lo. Mas de ti ouvi dizer que, quando ouves um sonho, tu o interpretas”. (Gn 41,15).
O Faraó tem dois sonhos que ninguém consegue explicar. O chefe dos copeiros, que outrora estava com José na prisão, se lembra dele e o chama.
Diante do rei egípcio, José afirma que é Deus quem interpreta os sonhos e ele apenas transmite a mensagem, assumindo-se como um porta-voz. Ele afirma que os sonhos se referem a sete anos de fartura e de escassez e ainda faz recomendações ao Faraó, que no mosaico é retratado contemplando a união do hebreu com o Senhor, presente na cena pelo sinal da mão divina. Nota-se uma unidade total, pois Deus passa tudo “de mão em mão” para ele.
Atrás do trono do Egito estão os adivinhos e sábios, que também contemplam José. Sobre a cabeça deles e do Faraó está a representação do sonho que o então encarcerado pôde explicar.
Então o faraó disse a José: “Já que Deus te revelou tudo isso, não há homem tão prudente e tão sábio como tu”. (Gn 41,39)
Diante da sua união com Deus, demonstrada pela explicação do sonho ao Faraó, José é feito administrador dos bens do Egito. Sua vida é mudada graças a sua humildade, pois reconhece a si mesmo como um enviado.
No mosaico, o Faraó é retratado descendo de seu trono para demonstrar que não é José quem quer uma carreira, pois ele não almeja isso, mas apenas aceita tudo o que acontece. Por isso, seguindo os desígnios divinos, ele é investido pelo próprio Rei do Egito como governador, representado pelo anel colocado em seu dedo e um colar de ouro.
O êxito do governo de José é retratado pelos sacos de suprimentos localizados atrás do trono egípcio. Eles simbolizam a fartura e o estoque feito para os tempos de fome.
José se faz reconhecer por seus irmãos durante a fome na terra de seu pai (Gn 41,53–47,31)
José disse a seus irmãos: “Aproximai-vos de mim!” E tendo-se aproximado, disse-lhes: “Eu sou José, vosso irmão, que vendestes para o Egito”. (Gn 45,4)
Conforme José havia predito, a fome se abate enquanto ele governa o Egito, a maior potência daquele tempo, que não sofre graças ao governo do hebreu. Jacó ouve dizer sobre as condições do Egito e ordena a seus filhos que vão até lá comprar suprimentos.
José, então, começa a tratar seus irmãos com uma pedagogia que os levará à consternação e que atingirá também seu pai. Isso faz com que eles, mesmo sem saber quem era José, se arrependam do que haviam feito, pois julgam ser aquilo o pagamento pelo sangue derramado contra seu irmão.
Somente após educá-los com sua pedagogia e também, de forma indireta, ensinar seu pai a deixar a possessão dos filhos, José revela-se a eles. Essa cena é descrita nos mosaicos com o hebreu retirando a insígnia egípcia para falar com os irmãos. Ali, ele apresenta-se como um deles e lhes dá as terras férteis do Egito. Seu rosto está totalmente configurado ao rosto de Cristo, pois assim como seus irmãos se salvaram estando com José, aqueles que estão com Cristo e em Cristo são salvos por Ele (Rm 10,8-12).
José permaneceu no Egito com toda a família, com toda a Israel. Porém, quando os egípcios se esqueceram de quem era José e o que ele fez para eles, os hebreus tornaram-se escravos.
Impuseram-lhes feitores no trabalho forçado, para oprimi-los com trabalhos penosos. Eles construíram para o faraó as cidades-armazéns de Pitom e de Ramsés. (Êx 1,11)
A cena que encontramos retratada no alto, do lado esquerdo na frente da Fachada Norte, marca o início do livro do Êxodo, tema principal de toda essa fachada. Dois egípcios batem em três hebreus. Na iconografia, dois é princípio de multidão, que aqui significam os egípcios, já três representa a multiplicidade, ou seja, todos os hebreus.
Quanto mais os hebreus cresciam, mais perigo representavam para os egípcios. Por isso, foram obrigados a um trabalho mais duro, ficando sempre sob controle. O trabalho forçado despersonaliza, torna o homem uma máquina e não mais uma pessoa. Não tem mais um rosto único, mas se perdeu. E essa é justamente a imagem do pecado, trabalha-se como uma máquina.
O Egito é lido espiritualmente, nas tradições hebraica e cristã, como imagem do pecado. O faraó é a imagem do pecado e o pecado domina. Por isso, no mosaico, os hebreus são golpeados e levados à terra. Eles trazem na cabeça tijolos que fabricavam, símbolos da Torre de Babel (Gn 11) e do trabalho do solo, herança da expulsão do Paraíso (Gn 3,23). Eles estão curvados, pois, por causa de seu pecado, agora devem trabalhar o solo de onde vieram (Gn 3,19).
Essa figura representa o ser humano decaído no pecado e sem vontade de libertar-se dessas amarras. Recorda que o pecado consegue fechar o homem entre a terra e aquele que o oprime, que é o próprio pecado do homem. Ambos aparecem iguais, tanto os que mandam quanto os que fazem, pois é sempre a mesma realidade do homem.
A mãe de Moisés o salva colocando-o nas águas do Rio Nilo(Êx 2,1-10)
Não podendo escondê-lo por mais tempo, tomou um cesto de junco, calafetou-o com betume e piche, colocou nele o menino e o pôs entre os juncos à margem do rio (Êx 2,3)
Moisés nasce quando era proibido nascer. O faraó havia ordenado a morte de todos os meninos de Israel que nascessem, jogando-os no Nilo. No mosaico, duas mulheres — que simbolizam muitas — atiram crianças, cumprindo a ordem do Faraó. A mãe de Moisés também o coloca no Nilo, mas não o atira. O coloca lá em uma cesta que simboliza a Arca de Noé. Assim, a filha do Faraó, que se banhava perto dali, o encontra entre os juncos e fica com ele.
A figura apresenta os braços da mãe de Moisés e da filha do Faraó entrelaçados. Essa última, conta com braços mais fortes do que o necessário, pois representa a acolhida. Aquele menino hebreu foi feito, assim, egípcio.
Os primeiros Padres da Igreja viram em Moisés a imagem de Cristo. Jesus se torna homem e assume o pecado (2Cor 5,21). O Egito é a figura do pecado e Moisés é feito egípcio, feito pecado. O Êxodo é, portanto, a preparação daquilo que Deus fará com seu Cristo.
Moisés olhou em torno de si e, não vendo ninguém, matou o egípcio e o enterrou na areia. (Êx 2,12)
Moisés pensava, inicialmente, que seus irmãos hebreus queriam que Deus os libertasse por meio dele. Ele vê a injustiça com seu povo e pensa ser o único capaz de encerrar esse ciclo de escravidão, pois era formado e educado na corte do Faraó.
Nessa cena, Moisés é representado com olhos grandes, como quem olha e não vê ninguém como ele. Ele está representado no centro da cena porque acredita ser o protagonista da ação libertadora.
Por isso, ele mata o egípcio com uma pedra, e o enterra, deixando os pés de fora. Faz isso, pois pensa ser protagonista e age sem Deus. Ele não entende sua vocação, que só pode ser compreendida como serviço. Quarenta anos em Madiã — para onde fugiu — serão necessários para que Moisés “saia do primeiro lugar” e dê precedência a Deus.
Moisés foge para Madiã e se torna pastor (Êx 2,15b-22)
Moisés sentiu-se feliz em morar na casa de Jetro; e ele deu a Moisés sua filha Séfora. (Êx 2,21)
Após fugir do Egito, Moisés chegou na Terra de Madiã. Lá ficou 40 anos sendo pastor, casou-se com Séfora, que morava naquelas terras com seu pai Jetro, homem que deu ovelhas a Moisés e o fez pastor, preparando-o para assumir o pastoreio do povo hebraico. A vida na família faz com que ele seja capaz de escutar e permitir que Deus possa manifestar-se a ele. Assim, ele pôde voltar ao Egito para viver segundo Deus.
Ali, Moisés entende que todos os que encontraram Deus devem sair de si, pois Ele nos faz caminhar. Deus aparece a Abraão e pede que ele faça o êxodo, saindo de sua terra e indo para a terra que o Senhor mandar (Gn 12,1-9). Faz com que o homem saia de sua natureza e viva a natureza Divina. Também Moisés realiza o êxodo do Egito para Madiã, de Madiã para o Egito e do Egito para a Terra Prometida.
“Eu sou o Deus de teu pai: o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó”. Moisés cobriu o rosto, temendo olhar para Deus. (Êx 3,6)
Moisés caminha pelo deserto pastoreando o rebanho de seu sogro e vê uma sarça pegando fogo. Ele se detém, olha, e vê que a pequena árvore não é consumida. Ele se aproxima para analisar e entender. Ali, escuta uma voz que o chama pelo nome, o que representa que Moisés não é um desconhecido para Deus. Ali, ele descobre sua vocação.
Primeiro era Moisés quem queria libertar seu povo. Agora, ele é enviado pelo próprio Deus. Reconhece-se humilde, como alguém que não sabe falar, não sabe fazer nada. E é aí que abre espaço para que Deus possa fazer algo.
Na representação do mosaico, a Virgem Maria foi inserida na sarça ardente. A Tradição da Igreja reconhece na Sarça Ardente a figura da Virgem Maria, pois ela é a mulher que acolheu o Espírito Santo, o fogo, e não foi consumida por Ele, mas deu carne a Deus. Foi assim que São Gregório de Nissa e São João Crisóstomo interpretaram essa passagem.
A cena foi propositalmente colocada próxima à Porta Santa do Santuário, que por sua vez traz a representação da Anunciação. A localização mostra a Mãe de Deus como custódia de Jesus e Moisés como prefiguração da libertação do pecado, que só acontece de fato quando Deus se faz homem.
A rebelião dos hebreus contra Moisés e Aarão (Êx 5,1-23)
Os representantes dos israelitas disseram a Moisés e a Aarão: “Que Javé vos veja e vos julgue, pois nos tornastes odiosos diante do faraó e de seus servidores e pusestes a espada em suas mãos para nos matar” (Êx 5,21)
Moisés vai até o Faraó com Aarão e pede a libertação do povo hebreu para que possam celebrar uma festa ao Senhor no deserto. O Faraó não gosta desse pedido e impõe mais serviços para o povo de Israel. Agora, além de fazerem tijolos, eles também precisam buscar a palha para fazer fogo.
Isso faz com que o povo se rebele e não queira sair do Egito, pois não quer ser libertado. No mosaico que está no alto do lado direito na frente da Fachada Norte, Moisés é representado com a mão na bochecha, iconografia que demonstra dúvida. Ele pensa: Deus me enviou de Madiã para libertar este povo e eles querem se manter aqui. Aarão olha com estupor e não entende o motivo da ira dos hebreus, nem o motivo de não desejarem a libertação.
Eles não querem ser libertados, pois possuem a lógica do escravo. O pecador possui a lógica do escravo. O escravo, assim como o pecador, não entende a liberdade do serviço.
Os hebreus recriminam Moisés e Aarão pelo Faraó os verem mal. Moisés, como libertador do povo, é recusado, mas Moisés não é o verdadeiro libertador e sim Deus. Por isso, Deus é recusado. O pecado faz a recusa de Deus. O pecado é o maior ditador do homem e ele tem todas as pedagogias para encontrar o raciocínio que nos faz permanecer no pecado.
Quando o faraó vos disser: ‘Fazei um prodígio’, tu dirás a Aarão: ‘Toma tua vara e atira-a diante do faraó, e ela se tornará uma serpente’ (Êx 7,9)
Moisés é avisado por Deus que havia endurecido o coração do faraó e que iria manifestar seus prodígios diante dele. O primeiro desses prodígios, a vara que transforma em serpente, está retratado nesta cena.
A vara é, antes de tudo, o elemento que designa o pastor, que a utiliza para guiar e defender. No Antigo Testamento, ela é considerada como cetro (1Sm 17,43; Gn 49,10) que jamais será tirado de Judá. Ela também é profecia, eleição, sacerdócio (Nm 17,16-28).
Quando Moisés, junto de Aarão, vai conversar com o Faraó, pedindo que deixe os hebreus livres, o bastão desse segundo se torna serpente. Esse sinal, entretanto, não convence o rei egípcio, que ordena que seus feiticeiros – representados atrás do trono egípcio – também façam surgir esses animais a partir de suas varas. Porém, nessa confusão, a serpente de Aarão, ou seja, seu bastão, sai de seu controle e começa a lutar com a serpente do Faraó – símbolo da morte – engolindo-a.
Nem mesmo esse sinal convence o Faraó, que continua com o coração endurecido. Essa atitude do rei egípcio está representada na Fachada por seus braços cruzados e seu olhar voltado para fora da cena.
Nessa passagem bíblica, a Igreja vê o prenúncio de Cristo, que por sua morte, “engoliu” a morte, como descreve Santo Efrém, o Sírio. Quer dizer que não será a morte que irá matá-lo, mas é Cristo essa serpente de Aarão, no seu sacrifício da cruz, que devorará a morte.
As pragas do Egito arruínam o governo do Faraó (Êx 7,14-25; 8,1-11; 12-15; 16-28; 9,1-7; 8-12; 13-35; 10,1-20; 21-29; 11,1-10)
Tu lhe dirás: ‘Javé, o Deus dos hebreus, mandou-me a ti para dizer-te: Deixa meu povo partir para que me preste culto no deserto: até agora, porém, não me destes ouvidos’ (Êx 7,16)
Quando o desígnio de Deus encontra o pecado, o Senhor não se retira, mas utiliza seu desígnio para destruir o pecado. Primeiramente, ele mostra que o homem que crê tudo dominar é o verdadeiro pecador, pois bloqueia a ação de Deus.
O Faraó acredita que domina o Egito. Então, os fenômenos começam a acontecer para demonstrar que o cosmo deve manifestar seu verdadeiro proprietário, que é Deus. Quando a terra começa a se mexer, o Faraó vê começar sua ruína e nota que não domina nada.
Sua figura, representada no mosaico, está ao centro, sobre um trono que desmorona, pois é outro que move as coisas desta terra e começa a libertar o cosmos do pecado humano. Sua face está confusa, como quem não compreende os acontecimentos. Ao redor dele, as pragas do Egito, descritas pelo próprio Deus como maravilhas (Êx 7,3). O fundo é preto, demonstrando como o homem sente seu poder arruinado quando já não pode mais dominar.
‘Esse dia será para vós um memorial e o celebrareis como uma festa em honra de Javé, de geração em geração, como instituição perpétua’. (Êx 12,14)
Após o faraó se recusar repetidamente a libertar o povo hebreu, Deus anuncia o último sinal: a morte dos primogênitos dos egípcios, desde os filhos do faraó, de seus servos e até mesmo os primogênitos dos animais. Esse evento convenceria o faraó a libertar os israelitas.
Moisés começa a passar de família em família para começar a convencê-las a fazer uma ceia, conforme o pedido do Senhor. Ela deve ser feita com pão ázimo e um cordeiro de um ano, sem defeito, macho e sem manchas e as pessoas devem consumi-lo vestidos para partir, de forma apressada. Essa ceia será um memorial, um rito perene.
Na representação do mosaico, vemos Moisés escrevendo na soleira da porta com sangue. O anjo exterminador se inclina diante da porta, pois viu o sangue. São Tiago de Sarug, um monge e bispo sírio, diz: Como é possível que o anjo se incline diante do sangue do cordeiro? Não é possível! Mas ele se inclina, pois naquele sangue reconhece o sangue do Cordeiro verdadeiro, Cristo. É Ele o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (Jo 1,29).
Foi o próprio Deus quem quis que o sangue do cordeiro degolado libertasse os hebreus. Fez isso para que pudessem entender que quando for degolado o verdadeiro cordeiro – Cristo – aí sim virá a libertação total. Quem beber do sangue desse cordeiro e comer da sua carne, esse viverá eternamente (Jo 6,54-56).
A travessia do Mar Vermelho (Êx 14,1-31)
“Moisés estendeu a mão sobre o mar, e Javé o fez retirar-se mediante um forte vento oriental que soprou a noite toda, deixando-o seco e as águas se dividiram. (Êx 14,21)
Depois de permitir a saída, o faraó se arrepende e envia seu poderoso exército atrás dos israelitas. Quando o povo hebreu chega ao Mar Vermelho, aparentemente encurralado, Deus instrui Moisés a estender sua vara sobre o mar, e as águas se dividem, criando um caminho para que fosse atravessado em segurança. O exército egípcio tenta seguir, mas águas retornam afogando os soldados e os seus carros.
A travessia do Mar Vermelho se insere no nascimento do povo novo, que, por sua vez, é a prefiguração do nascimento do homem novo, que nascerá do encontro com Deus. Ao sair do Egito, o povo terá pela primeira vez a experiência de ser visto não como escravo, mas como livre. A ceia pascal dos hebreus foi a prefiguração da libertação verdadeira, que acontece em sua plenitude com a travessia marítima. O ritual perpétuo não é, entretanto, a travessia “a pé enxuto”, mas a ceia, onde já está incluída a passagem que ainda não havia acontecido.
Quando o sol se punha, Moisés entrou no mar e de lá saiu quando o sol surgia. Os padres da Igreja entenderam que eles seguiam ali a coluna luminosa, que é Cristo, o único sol. Depois dessa passagem pelas águas surge o povo novo.
Na representação da fachada podemos ver, na cena da passagem do Mar Vermelho, a mão de Moisés com seu bastão indicando o alto da arcada, onde está a visão apocalíptica do céu aberto com o ancião, o trono, o cordeiro e os seres viventes, bem como o martírio de Santo Estêvão à esquerda e o batismo de Jesus à direta. Essas são as realidades futuras, que ainda não vivemos, mas que cremos e professamos. A outra mão de Moisés aponta para a entrada do Santuário, lugar onde os peregrinos entram para o corpo de Cristo (isso é ser cristão), para se descobrirem mergulhados na comunhão do Pai, do Filho e do Espírito Santo, tal como vemos escrito nos mosaicos sobre o nártex (pórticos antes da entrada) da Basílica.
Ouvi as murmurações dos israelitas. Fala-lhes assim: ‘Ao entardecer comereis carne e pela manhã vos saciareis de pão, e sabereis que eu sou Javé, vosso Deus’ (Êx 16,12)
Após saírem do Egito, os hebreus ficaram 40 anos no deserto, onde foram educados por Deus para esquecerem a terra egípcia. Ali, eles começam a murmurar na base da nostalgia. Em uma noite eles saíram do Egito, mas em 40 anos o Egito demorou a sair deles. As duas primeiras cenas no alto da lateral oriental da Fachada Norte retratam ocasiões de murmuração.
Na primeira, querem comer e Deus deu a eles o maná pela manhã e à tarde codornizes. Do céu lhes provém esses alimentos para ajudá-los a entender que o comer será sempre uma recordação de Deus.
Os hebreus saíram da situação de escravidão atravessando o Mar Vermelho e esqueceram de tudo. A única coisa de que se lembravam era a carne, panela, cebola, melancia, peixe, entre outros.
Na representação do mosaico, apresenta-se a murmuração contra Deus e as saudades dos alimentos, representados em uma panela. Ao mesmo tempo, parte do povo recolhe o maná e as codornizes, buscando alimentos.
Deus faz brotar água da rocha e sacia a sede dos hebreus no deserto (Êx 17,1-7)
Eu estarei diante de ti, lá sobre a rocha, de Horeb; golpearás a rocha e dela jorrará água para o povo beber. (Êx 17,6)
No deserto o povo tem sede e começa a colocar condições para Deus, enquanto Moisés tem medo de ser apedrejado e, por isso, duvida do poder divino. No mosaico, é possível notar o demônio tentando ao povo para que aja contra seu líder. Ele é representado como um furacão, com a cabeça para baixo, pois vê as coisas de maneira invertida.
O Senhor, porém, diz a Moisés que fará brotar água da rocha. Ele, porém, duvida e peca contra Deus. Por esse pecado, ele e Aarão não poderão entrar na Terra Prometida.
No mosaico da Fachada Norte, Deus está representado sobre a rocha. Ela, porém, verte água de sua fenda, que recorda o lado aberto de Cristo. É ali que Moisés bate com seu bastão e faz com que os hebreus, sedentos no deserto, possam saciar sua sede.
Uso de misericórdia até a milésima geração com aqueles que me amam e observam meus mandamentos. (Êx 20,6)
No alto do Monte Sinai Moisés acolhe as duas tábuas da lei como se acolhesse um dom, recebido pela grande mãe de Deus. Ele é muito humilde, e todo entregue, abre as duas mãos recebendo de Deus essa Lei.
O povo hebreu teve a experiência de ser conduzido por Deus para fora da terra do Egito e ser acolhido por Ele (Êx 6,7; 19,5-6; Lv 26,11). Deus os fez vir até Ele, não foi o povo quem foi por si mesmo. Por isso, a Lei é acolhida como um auxílio para não se esquecer das obras do Senhor, uma ajuda à memória como forma de gratidão. Isso exige uma contínua fidelidade, vigilância e compromisso (Êx 24,7-8), que se resumia no Decálogo.
Os hebreus se esquecem de Deus e adoram o bezerro de ouro (Êx 32,1-14)
Então Javé disse a Moisés: ‘Vai, desce, porque teu povo, que tirastes da terra do Egito, se corrompeu’ (Êx 32,7)
Moisés desce do monte com as tábuas da Lei e já podemos perceber que algo deu errado, pois o povo hebreu fez um bezerro de ouro. Ele traz a duas tábuas, pois uma indica a relação com Deus e outra com o próximo. Não se pode amar a Deus sem amar o próximo, pois o amor vem de Deus (1Jo 4,7).
Ele segura as tábuas olhando a idolatria feita ao bezerro, imagem de Baal. O ídolo esmaga-os e eles ficam curvados ao solo. Todos estão de perfil e estão todos com narizes feridos, pois arrancaram suas joias para fabricar a estátua.
As duas mulheres atrás de Aarão, revestido em trajes solenes, o empurram. Aarão acha que está no controle, mas é controlado, escravizado pelo pecado.
A escada de ponta-cabeça acima desta cena, confirma que a idolatria não permite subir a Deus, enquanto por essa mesma escada, do outro lado, Deus sobe e desce livremente. Isso mostra quão absurdo é pensar que seja possível chegar a Deus por meio do sacrifício religioso: ninguém nunca chegou assim.
‘Eles me farão um santuário, para que eu habite no meio deles. Farás tudo conforme o modelo do tabernáculo e o modelo de sua mobília que vou te mostrar’. (Êx 25,8-9)
A habitação que Moisés construiu, o Tabernáculo, é a prefiguração da habitação de Deus na terra. O verdadeiro templo é o corpo de Cristo. Por isso a arte apresenta Moisés controlando para que tudo seja feito conforme o próprio projeto desejado e querido pelo próprio Senhor.
No capítulo 26 do livro do Êxodo, descreve-se, por exemplo, como deve ser feito o véu. Ele deve possuir três cores: vermelho roxo, vermelho escarlate e carmesim. Esse véu era a representação da carne e Moisés assim o descreve.
Os mosaicos mostram a construção do véu que divide o templo. Entre os trabalhadores está uma singela e sutil representação da Virgem Maria trabalhando na confecção do tecido. Santo Efrém, o sírio, afirmou que na anunciação Maria é a costureira que tece o templo verdadeiro, a carne de Cristo.
Deus revela a Moisés sua glória no alto do Monte (Êx 33,12-23)
Javé disse a Moisés: ‘Eis aqui um lugar perto de mim; tu ficarás sobre a rocha. E ao passar minha glória, eu te porei na fenda da rocha e te cobrirei com a mão, até que eu tenha passado. Retirarei depois a mão, e me verás pelas costas; minha face, porém, não se pode ver’. (Êx 33,21-23)
Moisés sobe ao Monte, lugar da manifestação de Deus. Essa cena mostra o Santuário com esse Monte onde o próprio Deus se manifesta não de forma teatral, mas por meio de sua ação gloriosa.
Na passagem bíblica, quando Moisés pede que o Senhor intervenha junto do povo, o profeta pede para ver a face divina. Isso, porém, não é possível, e o próprio Senhor coloca sua mão sobre a face de Moisés, permitindo que após sua passagem ele perceba a glória divina.
Por isso a iconografia cristã apresenta Deus com a mão. Os Padres da Igreja viram nisso um modo de conhecer a Deus. Deus se conhece quando constatamos sua obra.
Todas as quatro fachadas serão a manifestação daquilo que Moisés viu na mão de Deus. Elas mostrarão a obra do Pai que Moisés viu na mão e que se cumprirá quando o homem se sentir gerado como filho. Só esse gesto iconográfico dessa enorme mão, que tem mais de um metro, contém toda a obra que Deus vai fazer.
A proposta é de que cada devoto, ao observar a Fachada Norte, olhe a obra que Deus fez por meio de Moisés e perceba que Deus está operando em nós uma transformação daquilo que Ele é. É isso que essa mão esconde em cima da fachada.
Então eu vi, de pé, entre o trono e os quatro seres vivos e no meio dos anciões, um Cordeiro como que imolado. (Ap 5,6)
Na parte interna do arco de cada fachada existem representações do Apocalipse. Na fachada Norte foi representado, no ponto interno mais alto, o trono, o ancião e o Cordeiro imolado de pé. Isso porque só o Cordeiro pode realizar o bem ao modo do bem.
Dessa forma, de longe, será possível ver somente o Êxodo. Quando se aproxima da fachada, entretanto, será possível ver a chave de leitura: o Pai e o Cordeiro.
Pode-se ler a inscrição “Será para vocês um memorial perpétuo”. Esse é justamente o ponto central, pois a ceia e a memória do comer lembrarão a saída do Egito, e essa memória apagará outro desejo de comer. Ou seja, o homem se desligou de Deus comendo. O pecado aconteceu quando a serpente convenceu Eva a comer o fruto proibido para ser como Deus. Ela comeu, mas morreu. Deus, porém, é o vivente. O início da libertação começa com o comer que não recordará mais o pecado, não despertará mais a paixão, mas recordará o Senhor, que é o libertador.
Jesus é batizado no Rio Jordão (Mt 3,13-17)
Depois do batismo, Jesus saiu logo da água. Os céus se abriram, ele viu o Espírito de Deus descer como uma pomba e vir sobre ele. E do céu veio uma voz que disse: ‘Este é meu Filho amado, de quem eu me agrado’. (Mt 3,16-17)
No interior do alto da arcada, duas cenas bíblicas também do Novo Testamento ladeiam o ancião e seu trono. À direita, vê-se o Batismo de Cristo e à esquerda o martírio de Santo Estêvão. Há um rio vermelho e um rio branco, com 24 peixes dentro, representando 24 anciãos.
Essa simbologia recorda que a verdadeira passagem será feita no Reino de Deus, que nós já recordamos mesmo na nossa existência humana. Com o batismo, nós lavamos nossas vestes no sangue de Cristo.
Por isso, o rio onde Jesus está inserido é vermelho. A veste banhada no vermelho, no sangue do martírio, sai branca como o rio que brota da cena do martírio de Santo Estêvão. Essa é a verdadeira passagem, o senso batismal.
Na figura de Jesus, batizado por João Batista, recordamos que somos batizados e revestidos em Cristo. É o batismo quem nos dá a vida, é por meio das águas do Batismo que o povo de Deus morre para o pecado e se abre à graça da salvação (Mc 16,16), vivendo a vida não mais de escravos, mas de filhos (Gl 4,7).
Cristo nos imerge, nos banha, nos encharca na vida de Deus, de maneira que possamos de fato absorver profundamente seu modo de ser, seu modo de viver a humanidade como Filho. É esse o modo do Cordeiro, o modo como Deus rege a história. Então Ele não apenas tira o pecado, mas nos dá também a capacidade de agir segundo Deus, tornando-nos filhos.
Estevão cheio do Espírito Santo, fixou os olhos no céu e viu a glória de Deus e Jesus de pé a sua direita; e disse: “Estou vendo os céus abertos e o Filho do homem de pé à direita de Deus”. Então, soltando grandes gritos, taparam os ouvidos e, todos juntos, lançaram-se sobre ele. (At 7,55-57)
Estêvão é o primeiro mártir, morre como Cristo, morre por causa do anúncio da Boa-Nova. Enquanto é apedrejado, vê o céu aberto, representado no mosaico pelo Ancião no Trono e o Cordeiro.
O amor se realiza ao modo do Cordeiro. Estêvão tem um conhecimento relacional, que se realiza ao modo do Cordeiro, isto é, do martírio, do testemunho.
Quem funda seu conhecimento na existência relacional e comunional do Espírito Santo tem o outro como epicentro. Quem sai de si para ir ao encontro do outro não pode se tornar ideológico, porque é mártir, está entregue. Esse modo é incompatível com o poder, porque o Cordeiro é incompatível com o poder deste mundo.
Estêvão diz que aqueles que o acusam têm outro tipo de conhecimento: seu pai é o isolamento, seu fundamento é o isolamento. E assim repetem fórmulas, estruturas e esquemas — e excluem quem aí não se encaixa. Por isso, Estêvão será eliminado por eles.
Estêvão pode ler a história porque vê a glória de Deus. Ele vê como se manifesta nesse seu drama a glória a Deus. Ele vê a história a partir do seu cumprimento, por isso está tão seguro, tão calmo. Ele vê onde está o Filho, que passou pela Páscoa, que se entregou, que se confiou às mãos dos homens. A história deve ser lida a partir do fim, mas, se não se participa da vida de Cristo, não se conhece o fim. Só se chega ao Cristo escatológico participando da sua vida: não há outro meio.
O que a humanidade está fazendo ao redor de Estêvão, especialmente aquela parte que se declara profundamente religiosa? Tapa os ouvidos e enche a boca de gritos para não ouvir o que ele está dizendo. Estêvão é um alter Christus, sua morte segue as pegadas da morte de Cristo, acontece segundo seu modelo.
Estêvão é um ícone de Cristo na história e no Reino; ele é justamente a imagem da Igreja, que vive em dois registros: Estêvão já está com Cristo, porque é parte de Cristo e já está no Reino, mas ainda vive na história precisamente a passagem pascal onde se manifesta o amor de Deus.
Ali, naquela cena dramática e violenta, encontra-se um jovem. Aos seus pés depuseram as vestes. Trata-se de Paulo, que se descreverá como um zelota religioso feroz. Daí se pode colher sua participação no apedrejamento de Estêvão. Estêvão está cheio do Espírito Santo, repleto de uma ontologia comunional, escatológica, do modo de ser do Cordeiro, totalmente relacional.
Em vez disso, Saulo é totalmente ideológico, baseia-se inteiramente em uma convicção religiosa estéril e seca, com um conhecimento de tipo muito fanático, muito ideológico e ligado ao poder: conhecimento, poder, execução. Saulo, com sua religião, está a serviço da morte. José se entregou, Estêvão se entrega, Cristo se entrega — Saulo não: é ele quem faz os outros se entregarem.
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Por Redação, em Arte que Evangeliza